sexta-feira, 5 de março de 2010

 

Eis a pessoa que eu gostaria de ter sido:

(Resquício dos TPC da TRAMA)

Tenho 77 anos. Estou velha. Não me sinto idosa, mas sei que o estou, que o sou. Tanto faz. Desci do 58 na paragem do Miradouro de São Pedro de Alcântara, porque gosto de contemplar a cidade aqui de cima. Inunda-me uma serenidade incrível em cada vez que o faço, Lisboa, qual instantâneo de Daguerre. Sento-me no banco do costume, enquanto bandos de pombos sobrevoam o jardim e me arrulham: “somos livres!” Há silêncio e uma quietude desmedida, rasgados pelos risos das crianças que passam de mochilas às costas, em correria, por enquanto imunes à lentidão do tempo. Estou sentada nem há cinco minutos, quando uma jovem mulher se detém a meu lado. Terá perto dos trinta. Olhos claros. Cabelo indefinido. Não é loira, tão pouco ruiva. A boca é o próprio sorriso. E as rugas de expressão encontram-se desenhadas perenemente nos seus olhos. Ri muito ou chora demais. Ou bailará constantemente entre os dois extremos do humor. Os sulcos ninguém lhos tira.

- Também desci do 58. – Diz-me com voz sumida. – Segui-a até aqui somente para lhe pedir um autógrafo.
- E porque o farias pequena? – Pergunto-lhe incrédula, embora curiosa.
- Porque lhe conheço a vida ao pormenor e admiro-lhe imensamente a existência. – Responde convicta.

Deixo-a falar. O meu silêncio é o que a incita a prosseguir, de modo ininterrupto, o relato dos meus dias.

Sabe Andreia, sei tudo sobre si. Encanta-me a forma como descobriu tão tarde que nascera para viver. Parecer-lhe-á tolice, isto de lhe dizer que nasceu para viver. Mas quando falo em viver, não me refiro ao sentido fisiológico. Não quero dizer respirar, comer, defecar, reproduzir-se. Quero dizer: VIVER. Entende? Começou tudo tão tarde. Como conseguiu fazer tanto? Percebeu a escrita como a sua forma de ser neste mundo, tanto tempo depois de ela constituir já toda a sua vida. A escrita a insinuar-se-lhe diariamente e a Andreia a tomá-la por certa, como a sede ou a fome. Foi preciso morrer-lhe o Nuno recorda-se? Conhecia-o mal, é certo, mas foi a morte daquele colega de trabalho, que numa semana a atendeu na biblioteca e na seguinte morrera subitamente, nos braços de sua mãe, que a fez assimilar inexoravelmente o efectivo risco que o sonho de infância, acalentado no seu íntimo, de na reforma escrever um livro, corria de não se concretizar. Assim escreveu o seu primeiro. Uma porcaria de resto, permita-me que lhe diga. Posso fazê-lo? Não me leve a mal, pois se a admiro profundamente, creia que não a poderia respeitar mais, fosse esse original uma obra-prima. Veio a alcançar notoriedade com os sucessores. Escreveu-os passados uns anos. Madura. Com o conhecimento mais sedimentado; menos ingénua. Reconheço-lhe o empenho, a vontade indómita de aprender, de não se contentar com as pancadinhas nas costas dos críticos, na altura generosos, embora tivessem demorado um tempo imenso a considerá-la. Louvo-lhe a humildade de se constatar continuamente em ignorância e de nunca se ter deixado toldar pela vaidade. Sei que ainda hoje assume as imperfeições, as lacunas no saber; os erros. Vinte livros publicados, aclamada pela crítica em vários países e ainda assim tão elementar, aqui sentada, a olhar para a metrópole dos seus avós. Isto, por si só, seria motivo de toda a minha admiração. Adoro ler e também arrisco uns escritos de vez em quando. Porém, não é tudo. Não estranhe que saiba tanto sobre si. Não me tema. Apenas pretendo apreender como conseguiu viver desta maneira e quando digo “viver” já sabe a que me refiro. Como com 33 anos, mais dois do que tenho agora, deixar tudo para cumprir o sonho de acompanhar a digressão de um ano, da sua banda favorita? Que coragem a moveu para adiar 365 dias a sua vida e a dos seus? Que desvarios terá experimentado? Esses, não fui capaz de apurar. Só o facto de ter deixado o emprego seguro, onde se sentia infeliz, para viver essa aventura. Grito colossal de liberdade que me fascina. Que maravilhosas histórias terá para contar aos seus netos? São dois, verdade? Voltou decerto mais rica dessa sucessão de dias imprevisíveis. Parece mentira, tudo o que fez.


Regressar desse ano de Rock and Roll e entregar-se nos dois seguintes a uma missão humanitária em Moçambique. Dar-se a terceiros, protelando tudo, sem saber se poderia recuperar aquilo de que abdicada. Sei que se isolou nesse período. Foi toda deles, dos meninos órfãos desse país. Pouco mais sei. Não quis que se soubesse. Porquê o pudor? Não acha que os outros deveriam saber da sua generosidade? Do seu altruísmo? Temia que deixassem de ser genuínos se fizesse alarde desses? Como é que o Sérgio esperou por si? Como continuou a amá-la? Ama-a ainda, ao que sei. É belo. Mesmo quando o abandonou novamente, assim que regressou de Moçambique. Foi para uma plataforma de estudos oceanográficos, no meio do Pacífico, documentar-se para um livro sobre o fundo do oceano o qual, aliás, amou intensamente toda a vida e com que coloriu muitos dos seus romances. No regresso o seu amor ainda a esperava e com 38 anos enceta outra jornada, a maternidade. Por amor a ele que muito o desejava. Assustavam-na as dependências e a ideia de ter outrem amarrado a si por laços invioláveis; inquebrantáveis. Os bebés das suas amigas aterravam-na, mais do que a acicatavam. Pelo Sérgio venceu os receios e foi uma mãe exemplar. Três filhos em quatro anos. Amorosa, dedicada, sem, contudo, se esquecer de si. Nunca olvidou o que lhe era essencial e nunca abdicou da sua entrega aos outros. Nesses “outros” incluíam-se obviamente os animais, que desde pequena lhe mereceram, sempre, mais respeito do que as pessoas. Em tenra idade os elegeu como a mais perfeita obra de Deus. Arranjou tempo para ser activista da PETA e empenhou-se na mudança de mentalidades. Maço-a? Conto-lhe o que sabe de cor. Perdoe-me mas continuo esta história. A sua. Permitir-me-ia se a escrevesse um dia? Dar-me-ia semelhante honra? E que dizer da amizade com que sempre se vestiu? São unânimes os seus amigos. Chamam-lhe “a irmã com que a vida me presenteou”. Dedicou-se-lhes abnegadamente. Chorou entretanto a morte de alguns, dedicando-lhes os seus manuscritos. Aos mortos e aos vivos. Foi na amizade que mais se encontrou. Andreia como se consegue aproveitar tão bem uma vida, não me diz? Como cumpriu tão bem essa missão? Terão 24 horas os seus dias, como têm os meus? Dorme de noite? Ou vive noite e dia com sofreguidão insaciável e permanente? Sei que foi acometida de doença atroz, que hoje a impede de escrever, porque lhe roubou o vocabulário. Chamaram-lhe afasia progressiva. A Andreia chamou-lhe oportunidade. Possibilidade de dedicar todo o tempo que lhe resta – e que a escrita com a respectiva obsessão de que era acometida ao fazê-lo, preencheria – aos seus e aos que pressente sós. Sempre a moeu a solidão, embora fosse seu apanágio dizer, para que os seus interlocutores não se lamentassem de forma vã: “Sozinhos estamos todos.” Hoje passa os dias visitando essas pessoas ditas sós, nos hospitais ou em lares. Gente incapaz de apanhar o 58 ou contemplar as sete colinas. Não lhes pode ler, porque perdeu essa faculdade, mas recorda-se ainda dos seus contos e fala-lhes das histórias que um dia ganharam vida pela sua mão esquerda, ou explica-lhes simplesmente como estava o tempo no miradouro; este; imaginando em que pensavam os transeuntes com que se havia cruzado, inventando narrativas quotidianas, embora atabalhoadas por causa da moléstia que a assolou. Que me diz, dá-me o autógrafo? Alcança porque lho peço?


Ouvi-a atentamente. Nem tudo teve sentido, esta maldita doença roubou-me a inteligência e o entendimento de outrora. Sei, porém, que não lhe quero fazer um garatujo num papel. Isso é certo. Totalmente descabido, o seu pedido.

- Não.
- Não?
- Não.
- Porquê?
- Porque, minha querida, jamais ambicionei o reconhecimento das outras pessoas. Tudo o que fiz foi viver, como tu tão bem definiste quando principiámos a nossa conversa. Ou direi melhor, o teu monólogo?
- Mas é admirável a sua vida! Fruída ao segundo, rica em inúmeros aspectos que ultrapassam em muito uma carreira, que foi o que lhe permitiu visibilidade. É pelo conjunto que o desejo. Pelo que fez que foi visto e pelo que ficou escondido, embora não seja, de todo, menosprezável.
- Eu sei. Fiz o melhor que pude. Quis realmente, com toda a minha alma, aproveitar esta dádiva que é a vida. Este milagre. Mas não te dou um autógrafo.
- E o que é que digo à Raquel*?
- Diz-lhe que não te ocorre qualquer motivo para alguém te pedir um autógrafo.
- Só isso?
- Não. Diz-lhe também que, apesar de te teres sentido tentada a ambicionar que um dia alguém to pedisse, consideras afinal, que semelhante reconhecimento não é, de facto, importante. Diz-lhe ainda que, faças o que fizeres da tua vida, tens a certeza que terás aproveitado sublimemente o tempo que te foi concedido aqui.

Andreia Moreira.
29/11/2009

*O TPC consistia no seguinte: "Vão na rua e uma pessoa pede-vos um autógrafo. Porque o faria?"

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