domingo, 21 de março de 2010

 

INSANIDADE VOU-ME EMBORA

Quando a alma (nos) morre interrogamo-nos muitas vezes: “Quando é que Deus me leva?”

Acordo todos os dias depois de parcas horas dormidas com este pensamento na cabeça: Sou cansada de viver... Olho para o meu corpo cadavérico e enrugado e sei que o meu prazo expirou. Tenho a sensação, porém, que Ele se esqueceu de mim e que viverei perenemente nesta infelicidade. Num vazio dos dias que se sucedem às noites, sem piedade. Não os distingo. Aos dias e às noites...Limito-me a aguardar e vontade nenhuma. Ler entedia-me – os olhos são fracos e é tarefa hercúlea discernir os vultos esfumados que para os outros são letras – o croché não me entretém; ouvir rádio impacienta-me; a televisão não dá programa que preste; dormir todo o dia? Não consigo.

O que desejo fervorosamente é não voltar a acordar. Quero para sempre adormecer. Quero morrer. - Pronto já disse! - A educação católica não mo permite. Tivesse eu coragem. Diria que isto que vivo é uma “sobrevida” porque apenas sobrevivo. Ou melhor, afirmo ter uma “subvida” porque não chega a ser, efectivamente, o que considero uma existência. Que desígnios são os d’Ele? Convicta que me esqueceu. Abro os olhos pela manhã, bem cedo, ainda nem os passarinhos chilreiam lá fora e, então acordada, sou perfurada pela dor atroz de ter de respirar, por mais um dia. – Apreciava tanto os passarinhos, os animais, a natureza. Já não lhes acho graça. Não gosto de nada. Se me perguntassem, como nas entrevistas às pessoas famosas, Qual a palavra que melhor a caracteriza? Responderia: “nada” é a palavra que melhor me define. Sou “nada”. Sinto-me “nada”. No entanto, se “nada” fosse, não viria aquela mocinha tão doce visitar-me. Às vezes, por maldade, não lhe dirijo palavra. Faço isto à única pessoa que me visita e não sei explicá-lo. Urgência em maltratá-la. É tudo.

- Porquê mais um dia meu Deus? Não o quero. Dá-o a outrem. Escutas-me? Leva-me. Que castigo. Se todos os que amo já aí estão e levaram com eles a minha vontade de ser. Em nova as teorias: “Tudo o que precisamos está dentro de nós”. Sentia-me forte. “Sabia” que a felicidade só dependia do meu querer. Arrogante, achava-me auto-suficiente e encarava os outros como se de passagem. Deveria contar verdadeira e exclusivamente comigo. Era a tal sensação de omnipotência. Guiava-me sempre e somente pelos meus instintos. Passou, desde então, tanto tempo. À data ainda não tinha filhos nem havia tinha conhecido o amor que se pode ter a outra pessoa. Aquele que transcendia a posse, os ciúmes, um contrato assinado. E talvez diga isto porque cedo o perdi. É possível que o desgaste dos anos conseguisse destruir-nos. Não sei. Não sei porque o não pude viver. Arrancaram-mo. Extirparam-mos. Abriram-me o peito sem anestesia, puxaram-me o coração para fora e gritaram-lhe:

“Acabou tudo! Podes deixar de bater, não tens qualquer utilidade!”

- Boa tarde, estou a falar com a D. Cidália Martins?
- Sim sou Cidália Martins. Quem fala?
- Encontra-se sozinha de momento?
- Sim, o que se passa? O que deseja?
- Minha senhora estou a ligar-lhe do Hospital de Santa Maria é importante que cá venha. Peço-lhe que não venha sozinha.
- Está a assustar-me. Diga-me por favor o que se passa! Vou esperar pelo meu marido e vou para aí, mas se soubesse o que o levou a ligar-me… Foi buscar os meus filhos à escola…
- É sobre eles que lhe quero falar. Rogo-lhe que não venha só.

Deixei cair o telefone e caí também. Não concebia que fosse tão aterrador como se me afigurava. Quis crer que tudo ficaria bem. Falava com o senhor da voz serena, contudo angustiada e tudo acabaria por se compor. Pedi a uma vizinha amiga que me acompanhasse...

- É a D. Cidália Martins?
- Sou. Diga-me de uma vez o que aconteceu.
- Houve um acidente com o seu marido e os seus filhos...


Pausa curta, todavia sufocante. (O ar acabou-se-me ali. )

- Onde é que eles estão? - Gritei. Berrei o mais alto que pude, para que o brado lhes chegasse aos ouvidos e me encontrassem.

Onde é que estão? João! Ana! Mário!
Onde estão?


- Tem de ser corajosa D.Cidália. Faleceram. Foi grave demais. Ninguém sobreviveu ao acidente.
- Sobrevivi eu...


Não sei se o proferi, se o pensei e caí de joelhos num pranto que só cessou meses depois. Passado esse período não voltei a chorar ou a rir, a cantar ou a ter prazer, a sentir o que quer que fosse. Morri sem que o meu corpo me acompanhasse e entretanto passaram quarenta e nove anos. Tratei do meu internamento neste lar. Não quis ser fardo. Mantenho o meu orgulho desmedido. Quando fiz setenta anos decidi-o e aqui estou a definhar. Maldito corpo que não esmorece. Se este organismo tivesse alguma coisa que ver com a minha alma defunta há muito que desistira. Infelizmente sou sã... Não padeço de mal algum embora cá dentro putrefacta, agoniando-me em dor. Irreconhecível. Há uma pessoa a quem me dou: a Teresa. Passou-o também. Percebo-lhe a amargura, o desespero de ter de continuar a viver com o ónus de uma perda insuportável. A ela permito um vislumbre; consinto que me cheire as entranhas, que compreenda quem fui e deixei de ser. Aos outros uma dura couraça. A antipatia no olhar. Projecto a voz firme e ríspida que os afaste... E aquela miúda ignora todo esse esforço que empreendo para ser verdadeiramente repelente e continua a voltar. Teimosa! Não lhe passo cartão e lá vem ela. Sempre com uma atenção, uma doçura na voz. Não desarma. Mesmo nos dias em que tão pouco lhe dirijo o olhar. Fica. Perde o tempo que tem disponível. Afável. Fala-me como se me conhecesse de toda a vida, como se fosse, até, sua avó. Eu que não cheguei a sê-lo. Que nem pude ver os meus filhos crescer. Arre! Porque não desistes de mim? Desaparece!

Dedicado à minha MJ. Outra pessoa querida que me ficou pelo caminho (da liberdade). Lamento que chegada tão longe diga como lhe ouvi da última vez que nos vimos:

“A vida é uma mentira e as verdades que tem são muito duras.”

É na busca da (minha) verdade que tenho perdido pessoas que me foram um dia vitais. Nesse sentido concordo consigo. Há verdades mesmo duras. Gosto muito de si. Espero que o sinta. Até um dia.

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