domingo, 28 de março de 2010

 

INSANIDADE VOU-ME EMBORA

Estou sentado num degrau frio da entrada de uma loja em Lisboa. Comigo a mala que fiz ao sair, apressadamente, de casa. Não tenho para onde ir, nem com quem falar. Ninguém a quem recorrer. Fugi do que já não suportava mas eis que, sozinho, tenho medo. O que faço? Sem casa não tarda e passarei a indigente nesta cidade gélida, pobre em afectos. Apoio a cabeça no braço que tenho pesando sobre a mala e o desespero deixa-me prostrado. Passa um casal. Ele é alto, bem constituído, aloirado, traços fortes. Ela ar frágil, olhos claros, baixota e uma melancolia no olhar quando me vê. Entendo que a minha existência não lhe passou despercebida enquanto avançavam pela avenida e me deixavam para trás. Vislumbrei genuína preocupação e isso, de certa forma, deu-me algum alento. Neste degrau arrefecido que me entorpece os movimentos ainda não sei o que vai ser de mim, todavia aquele olhar que me foi lançado por uma perfeita desconhecida ajudou-me a acreditar por hoje (por agora) que o mundo não é esse lugar impiedoso que desprezo e ao qual queria escapar. Primeiramente fugi da minha aldeia. Chamavam-me “O maluco”. Olha que merda. Não me considero um desvairado.

Não mais que a D. Graça da mercearia que sabe que o marido tem outra família e continua com ele; que o Senhor Padre Lopes cuja filha todos sabemos quem é, filha essa renegada e ostracizada, tal como a mãe, por todos do lugar, sem culpa alguma e que ele teima em ignorar. Deposita, porém, todos os meses a quantia que as ajuda a sobreviver. O Senhor Silva diariamente aos caídos por causa do álcool. A Ti Joaquina que ama secretamente o marido da irmã e que, por causa dessa paixão, nunca chegou a casar, ou a entregar-se a outro homem. A Mariazinha que namora às escondidas com o Chico visto que o pai quer que ela case “bem”, ao invés de ir para o altar com um pobretana qualquer – O Chico, claro está. – O José que passa os seus dias a rezar porque não se perdoa ter dado um tiro fatal – Sem intenção, diz ele. – na mulher. A Joana Margarida que apanha do marido – O Alfredo – e a quem ninguém ajuda. Fingem todos nada saber. E podia estar aqui a noite inteira a falar daquela hipócrita cambada que tanto me enoja. Eu: Nuno maluco, “apenas” porque dizia e digo – Jamais me calarei. – o que me vai na alma. Falo sem pruridos daquilo que vejo e me é dado a perceber. Posso não ser de uma grande inteligência, nunca afirmei que o sou, falo somente das coisas como elas são no meu modo de as entender. Esta característica levou-me a ser despedido de todos os trabalhos que arranjei sem excepção e a não me concederem outro. Temem-me porque digo o que penso sem filtro e as pessoas não o querem ouvir. Para mim é tudo tão simples. As coisas são o que são. Para quê floreados? Começou em tom de brincadeira: Ah é maluco! Não sabe o que diz! Até que me elegeram o tonto oficial do burgo. O bode expiatório para os podres de todos. Não é que me importe de andar isolado. Sempre fui solitário. Senti-me, isso sim, injustiçado por terem feito de mim o que creio não ser e, antes que começasse a acreditar neles parti. Fi-lo depois da morte da minha mãe. Sofria tanto, coitada. Implorava-me: Nuno só dás opinião quando ta pedirem. Falas demasiado filho. A maldade das pessoas ainda te há-de atingir e nesse dia vais pensar neste meu conselho amor. Talvez nessa altura seja tarde demais para ti.

Não é que tinha razão? Aquelas pessoas são de uma estupidez atroz. Fossem capazes de ouvir, escutar real e objectivamente o que eu dizia… Fossem tão só capazes de admitir a realidade e ser-lhes-ia insuportável continuar a disfarçar. Haveriam de mudar e as suas existências tornar-se-iam, com certeza, mais fáceis, porque mais autênticas. Esquecem-se todas aquelas pessoas que podem ter silenciado “o Nuno maluco” – Estou longe. Não lhes faço mal... - Contudo quem lhes falava não era eu, antes as vozes das suas consciências. O que as aterrorizava era ouvirem, por mim, a vozinha interior que todos temos. Aposto que hoje que os deixei em paz continuam a escutá-la e os patetas satisfeitos por mais ninguém o saber... Não compreendem que, para o inferno ser real, basta que só eles o sintam. Eu cá, modéstia à parte, apenas os fazia encarar os problemas ao verbalizá-los. Não era eu quem os criava! Não me souberam dar o devido valor, é o que é. Poderia ter sido uma espécie de conselheiro da aldeia. Arranjava a sala da minha mãe com almofadas confortáveis; queimava aquela coisa que agora está na moda, incenso penso eu. A sala a meia-luz e eles vinham, um por um, para que eu lhes dissesse o que eles não querem conceber, mas que decerto lhes aligeiraria a vida. E o pagamento poderia ser, por exemplo, em comida. Sobreviveria do óbvio. Eh eh eh. Muitas vezes os indivíduos só conseguem assimilar a realidade quando essa lhes é esfregada no frontispício por uma terceira pessoa que lhes seja alheia. Esse seria o meu papel. Alheio que lhes era confrontá-los. Do problema mais triste ao mais alegre, do mais inocente ao mais sórdido. Penso que – E o que discorro não vale muito. – só na inteireza é possível sermos felizes. Aquela mulher, Mariana – Ouvi-o chamá-la – olhou para mim apiedada sem saber que, apesar deste frio que sinto no rabo e nas entranhas, sou feliz. Deveras afortunado. Estou amedrontado, é certo, com este desconhecido no qual me lancei irreflectidamente – Foi um impulso. Estava tão farto. – Ainda assim considero-me ditoso, porque verdadeiro comigo e com o que penso, quero e faço. Defronto-me com a realidade presente e sei que vai ser difícil, mas, pelo menos, não me anulo.

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