domingo, 30 de maio de 2010

 

INSANIDADE VOU-ME EMBORA

"O erro de educação"

Senhor: tenho uma dor.
Verdade. Sinto-a em mim.
Não sei onde me ataca,
mas é certo que a senti.
Dói-me do lado esquerdo,
do direito apodreci.
Perdi a conta das vezes,
que já disse: Dói-me aqui.
Não virá a dor da alma?
Daquela que esmoreceu,
em dias há muito idos.
O que hoje vêem?
Não sou eu.


Há quanto tempo não era? Mariana suspeitava que jamais havia sido. Construíra-o como quisera, como considerara o correcto. Como fora ele capaz? Guardara-o consigo, até que apta a vomitar o que a obrigara a aprender. Ao pensar nisso, a repulsa era um enorme nó na garganta. O tom? Acusatório, sim. Como pudera sujá-la? Macular-se daquela maneira?

- Mariana?
- Sim pai?
- Chega aqui.


Acabado o banho. Uma nudez que lhe era familiar mas que não a preparara para aquilo. Permanecera parada. Rubra. Trémula. Contrariada.

- Quero sair daqui. Quero sair daqui! - E no entanto imobilizada, a olhar para uma realidade que não era a sua e não desejara, de todo, ver.

1) Pénis
2) Prepúcio para trás
3) Glande
4) Testículos
5) Escroto

Ela um: ‘Tá bem sumido. Um: Posso ir? Suplicante. Vergonha. Quanta vergonha. Não era preciso pai! - Nessa altura pai, ainda. - Sou boa aluna. As imagens do livro são quanto baste. Nos testes não nos pedem descrição tão detalhada. Das provas não se recordava. Dessa lição a memória era indelével. Se quisera ser didáctico e (de)mo(n)strar o aparelho reprodutor masculino, porque não, quando a chamara, pedir que lhe levasse uma faca? Expunha também o resto. Rasgava-se à frente dela e:

6) Canais deferentes
7) Próstata
8) Epidídimo
9) Glândulas de Cowper
10) Vesícula seminal
11) Sangue

(Chamar, igualmente, Rita que alheia cozinhava o almoço e dizer-lhe que abrisse as pernas à filha. O ensino quer-se coerente e completo.)

Foi para a sala desculpá-lo. Atordoada, coração descompassado. As fontes que latejavam impedindo-a de ouvir outro som que não o da circulação a fugir-lhe nas veias. Arranjara dentro de si forças para crer quão excepcional era seu progenitor. Não tivera pudor em se expor. Nu, descritivo, tão-só para que ela aprendesse mais que todos os outros meninos. Não tivera vergonha. A vergonha passara, contudo, a ser dela. Jamais olvidou a crueza do momento. Não o confessou a outrem. Cresceu. Calada. Quieta. Uma boa menina. Quando o ouvia dizer que cometera um “erro de educação” com o qual a afastara de si, interrogava-se se era a isso que se referia. Crasso desvio, de facto. Não fora, todavia, o móbil do afastamento. Demorara décadas a consegui-lo. Tivera muitos anos para a ver, enquanto pessoa; sua filha; aceitar o seu amor incondicional. Porém, sempre vira nela, unicamente, a seta da medida certa para acertar no alvo. No único fito da sua miserável existência: a mãe. E amava-a deveras, mas não era ela. O pai confundira tudo e esse desmedido afecto que outrora Mariana nutrira por ele, definhou e pereceu.

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