domingo, 6 de junho de 2010
INSANIDADE VOU-ME EMBORA
Pouco sei da tua história. O que conheço, pode tentar-me a compreender. Encarar-te com alguma complacência. Enxotado pelos teus pais da terra quente, és criado por um padrinho tirano que te maltrata, te invade o corpo e a alma, sugando-te a inocência. O abraço dele envolve-te e não de ternura. É forte, determinado, penetra-te as entranhas enquanto te envenena o sangue, toldando-te a percepção. A realidade é demasiado cruel para ser mastigada, quanto mais engolida. - Lamento por ti. - Durante muito tempo acreditei que podia atenuar-te o sofrimento com devoção, com o meu amor, e o perdão constante às maldades. Esses actos perversos e pejados de desumanidade. Incrédula de os considerar tão sórdidos. A suposição de um passado dilacerante que te estilhaçou a mente em múltiplas personalidades esquivas, mascaradas, disfarçadas de alegria e bom humor. Pessoas dentro de ti que te falam e confundem levando-te a agir paradoxalmente. Esse pretérito que me baralha e submerge em culpa.
Não posso chegar atrasado. Não posso chegar atrasado!
O pensamento que lhe ocupava o íntimo, enquanto o chão escapava sob os pés. Sabia o que o aguardava. Um punho a um ínfimo pretexto de distância. Este. Era tarde demais para correr. Ia sofrer as consequências da sua meninice e no entanto corria. Corria. Corria! Corria como se disso dependesse a vida. Ei-lo e ao cinto, prontos a desabar-lhe. As pernas paralisaram, o coração acelerou, se ainda o era possível depois de tamanho esforço, e a sua ânsia de ser digno não evitou o terror que sentia. A urina quente percorreu-lhe as pernas de menino, magrinhas e sujas de jogar à bola. Até tão tarde. Ofendia tanto. O corpo, a alma, ele que não entendia porque teria vindo parar ali. Era feliz na terra quente onde a cada dia um bicho novo, um outro cheiro. Porque o mandara embora sua mãe? Para tão longe... Para os braços deste padrinho? Quem o escolhera? Odiava aquele homem com toda a sua vontade. Aquele monstro endeusado que as convenções e o medo obrigavam a apelidar de padrinho, com desproporcionada reverência.
(Porquê mãe? Porque me mandaste para aqui? Para este inferno.)
Deixou de amar aquela mãe. O pai. Enquanto morria pouco a pouco, a cada dia que passava junto daquele padrinho.
Mirava as pombas no poleiro. Aproximava-se, pegava nelas abusando da confiança que tinham na mão que horas antes as alimentara ou acariciara e perguntava:
- Como é que te chamas? Não dizes? - Crack.
E assim lhes torcia o frágil pescoço sem motivo aparente ou emoção. Deixava aquelas vidas esvaírem-se nas suas pequenas mãos, de petiz, sem esboçar esgar que denotasse um qualquer sentimento. E a verdade é que não nutria qualquer tipo de sensação pela morte. Morto estava ele. Alheio. Quando morrera? Quem o matara? Teria estado, um dia remoto, vivo? Gostava de falar sozinho. Muitas vezes o fazia. Não brincava como os da sua idade, excepto quando jogava à bola. Elaborava rábulas distorcidas, pregava pérfidas partidas, torturava animais.
- Onde estiveste?
- Vim directamente da escola para casa.
A bofetada fê-lo deslocar-se até à porta. Metros, portanto. Não chorou. Sabia bem que de nada lhe valeriam lágrimas. Outra chapada se lhe colou à face. Outra. Outra, ainda. Uma tempestade de agressões à cara que lhe conferia identidade. Encolhia-se o mais que podia.
- O padrinho não te disse já que tens dez minutos desde a hora de saída da escola até entrares por aquela porta? Precisas de cinco para o fazer, já te dou outros tantos de tolerância.
( Porque me mandaste para aqui mãe?)
O aposento. A escuridão. O ânimo esvaindo-se em fiapos. A luz que jamais voltaria a iluminá-lo. A raiva. O grito contido. A dor.
(Hoje não fui sovado. Hoje não fui abraçado. Hoje e apenas por hoje, estou a salvo.)
Eis que o seu caminho se cruza com o dela.
Nesse momento Rita vislumbrou apenas o que os olhos de fora lhe devolveram. E o que viu de certa forma a deslumbrou.
- Salva-te. - Dir-lhe-ia pudesse falar-lhe na altura. – Corre. Foge o mais que puderes. Tanto quanto as pernas to permitam. - Pudesse tê-lo feito e não estaria hoje, neste diário, a registar esta história.
O que é que se conhece dele? Sabemos apenas o que nos quis mostrar, o que permitiu que nos chegasse. Garantias de veracidade nenhumas. Eis o seu trunfo. De tanto a viver, passou a ser a própria farsa. A que noutros tempos o agredira e transmutara. Seria o mais cruel dos homens para uma única pessoa (mais tarde duas) e a mais dócil das criaturas para os restantes. Dessa forma, Rita, seria como ele foi, prisioneira na própria vida. Quem acreditaria nela? Quem crera nele e na sua história nojenta? Quem olhara para o padrinho e lhe teria dito: Basta. Ninguém. Essa mulher sentiria o abandono, a vulnerabilidade, o frio, todo o horror que ele vivera. Ninguém o vislumbraria. Plano por demais perfeito para ser intuído. Divertir-se-ia como uma criança com brinquedo novo e refulgente.
Foge. - Quero dizer-lhe. – Corre. Não olhes para trás.
Talvez possa nascer de outro homem. Não me importaria de não existir. Se pudesse dessa forma evitar-te tudo o que se passará. Antes não tivesse existido um “eu”.
Ela encarava-o com veneração. Conhecedor, orador nato. Sentia orgulho desmedido nele. E ele proferia piadas subtis mas envolventes que semeavam alguma insegurança. Ela não o saberia definir, embora finas farpas se lhe fossem entranhando no pensamento e apesar de não ferirem, ainda, verdadeiramente, incomodavam. Formulava: É brincadeira.
E ria-se descontraída.
Ainda.
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