domingo, 18 de julho de 2010

 

INSANIDADE VOU-ME EMBORA


Os primeiros dias permitiram ambientar-me aos hábitos da casa e às tarefas das quais me incumbiram. Não posso dizer que sejam difíceis. Não tendo outra vida além desta, as horas sobejam. O Companheiro persiste em ser um cão estranhíssimo. Não sai de ao pé de mim por um instante. Se não lhe der comida ou água não pede. Não se impacienta e o pêlo não cresce, naquela pelada que parece o resultado de uma qualquer intervenção cirúrgica. A cicatriz não engana. Não podendo perguntar-lhe o que se passou, ou podendo e sabendo, de antemão, que não obterei resposta e, além disso, não vendo nele qualquer intenção de se ir embora, sabe-me bem a companhia.

Amanhã teremos convidados. A azáfama será imensa, mas será engraçado ver mais gente por aqui. Sinto-me um tanto isolado e com falta do rebuliço. Na minha terra, em meados de Junho, havia sempre festa. Chegavam carrosséis, auto-caravanas que vendiam churros e farturas, barraquinhas de jogos e artesanato eram montadas e eu vibrava com tudo isso. Tinha para mim um apelo especial a confusão gerada pela alegria das pessoas. Das crianças principalmente. E depois havia aquele cheirinho característico a pairar no ar. Adorava misturar-me nas gentes e sentir-me de novo petiz. Aqui não me parece que vá ter muitas oportunidades de ir à feira. Teria de ir a pé até à vila e essa fica distante. O passeio seria, porém, belíssimo sempre à beira-mar.

Diz que vem cá uma sobrinha dos senhores com uns quantos casais amigos. Quando eram mais novos passavam aqui as férias de Verão. Chegavam a estar nesta casa dois meses inteirinhos e era o seu júbilo, ter a casa repleta de juventude. Hoje terei de arranjar o jardim. Reunir as folhas caídas, apanhá-las e colocá-las na pilha de compostagem. Recolher as pinhas e levá-las para o cesto que se encontra junto à lareira do palacete e as que sobrarem poderão ficar para o meu pequeno estaminé. As noites são frias independentemente da temperatura diurna. Há ainda que limpar o lago e alimentar os peixes. Programar as regas de hoje e de amanhã, de forma a aspergir em hora conveniente. - Ou muito cedo, ou à noitinha para maximizar o aproveitamento da água. Por outro lado não convém molhar os convidados. Havia de ser giro. Eh eh eh. Todos de rabinho molhado. - Tenho de verificar que os bancos de pedra do jardim se encontram limpos para que todos se sintam à vontade de os utilizar sem medo de sujar a roupa; trazer as mesas, cadeiras e respectivos chapéus-de-sol para fora, colocar-lhes toalhas que prenderei com umas molas em forma de sapo específicas para o efeito e por fim, chegada a hora, terei de encaminhar os carros de maneira organizada, para que todos se encontrem preparados para sair sem bloquear quem fique mais um pouco. Encarrego-me, portanto, da logística exterior do evento.

Terminadas as minhas tarefas, peço autorização para ir dar uma voltinha com o Companheiro. Que bela caminhada nos aguarda! Saímos pelo portão e fico a olhar para um e para o outro lado da estrada, tentando decidir o rumo a tomar. Por onde enveredar? Para a direita, pelo isolado caminho paralelo ao mar, com a Serra de Sintra no horizonte, ou para a esquerda direito à Vila? Decido-me pela direita, quero experimentar como reage o Companheiro num caminho mais sossegado. Continuará comigo? Ou partirá rumo ao desconhecido? Parece decidido a acompanhar-me. O nome escolhido, apesar de elementar, não podia ser mais apropriado.

Ah o mar. Pasmo sempre diante do mar.

A minha aldeia é interior. Íamos apenas a praias fluviais e sempre acalentei o desejo de o ver. Está frio. Sinto a brisa marinha salpicar-me o rosto o que me alerta para o facto de há muito tempo não me sentir tão pleno e descansado. Como serão as pessoas que amanhã lá vão? Invade-me o nervoso miudinho costumeiro. Afinal de contas estou nesta casa há menos de uma semana. Como irão olhar para mim? Cheiro-me. Será que fedo? Desde que me conheço esta mania: a dos cheiros. Outro dos motivos que levava os outros a encarar-me com estranheza: cheirar-me freneticamente em público, sem pudor ou qualquer discrição. Certo dia, meti na cabeça que as minhas calças cheiravam mal e queria que a minha mãe mas cheirasse em público. Não tinha mal algum, bastava inclinar-se um bocadito e perceber se lhe cheirava a alguma coisa. Claro que apenas eu não concebia mal na cena, pois queria que a minha mãe se baixasse para me cheirar a zona do rabo. Insistia para que o fizesse e ela recusava veementemente. Amuei. Assim que pude, enfiei-me numa casa de banho, tirei as calças e cheirei-as no malfadado sítio confirmando que não tresandavam. Claramente mais trabalhosa, esta operação.

Não sou lá muito sensível ao que apelidam “bom senso”. Deve ser o que me distingue, repelindo os restantes. No presente, depois das muitas maldades sofridas, compreendo as razões que a minha mãe invocou para não me cheirar o traseiro em público. Ainda assim persisto que não traria mal ao mundo, ela fazê-lo. Precisava efectivamente de confirmar que as calças não fediam. Recordo ainda aquele outro momento, numa aula de francês, em que empreendi que a camisola que envergava me cheirava a esgoto. Quase podia assegurar, vislumbrar pequenos mosquitos esvoaçando à minha volta. Passei a lição a cheirar-me de forma tão desvairada que a professora não aguentou e repreendeu-me defronte dos colegas:

- Nuno por amor de Deus pára com isso. O que é que se passa?

Os colegas, uma gargalhada colectiva. E se como laranja? É um vê se te avias a quantidade de vezes que levo os dedos ao nariz. E não nos esqueçamos dos três pares de cuecas que uso com receio que o tal cheiro “desagradável” passe cá para fora. Ok, admito que possa não ser muito comum esta obsessão pelos cheiros, mas cada pessoa tem as suas características, ou não?

Porque hei-de ser olhado de esguelha por causa das minhas? Nunca entendi. E daí que insistisse:

-Oh mãe cheira lá. Não vês que não consigo lá chegar? Vá lá.

- Nuno, não me faças perder a paciência contigo. Já te disse que não faço isso aqui. Já é o bastante o que ouço dizer de ti, filho. As pessoas são muito cruéis, não lhes vou dar mais argumentos.

Encolhia os ombros e franzia o sobrolho, deveras zangado, sem perceber a recusa a um pedido tão insignificante. Aposto que se o Companheiro soubesse falar, me cheiraria o rabo sem problemas e me diria, na hora, se estava certo ou equivocado. Mais, estou seguro que não julgaria mal o meu pedido. Cá para mim as pessoas complicam tudo. Ele está comigo incondicionalmente, sendo exactamente aquilo que sou. Com manias ou sem essas. Não me julga ou repele. E porquê? Porque não analisa. Olha para mim e vê apenas o ser que lhe dá afecto ou supre quaisquer carências. A isto chamo amizade incondicional. Não lhe temo condenação e não me sinto tão só, como outrora.

C-O-M-P-A-N-H-E-I-R-O.

Nem mais!



Dedicado a:
Ana Alexandre, Hugo Silva e Tânia Lopes. Eh eh eh eh.

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