domingo, 12 de setembro de 2010

 

INSANIDADE VOU-ME EMBORA

O Luís procurou-me. É um homem muito bonito de traços fortes. Cabelo escuro de madeixas grisalhas ladeando-lhe a fronte, que lhe conferem subtil charme. Envelheceu décadas com o que aconteceu. A tristeza solta-se-lhe dos olhos, dos ombros descaídos e a derrota declara-se vencedora, pela postura desistente. Incrédula, pergunto-lhe o que quer. Não será, para ele, definitiva a morte? A derradeira conclusão?

- Preciso de falar contigo.

- Sobre quê? Acabou tudo. Que posso fazer por ti?

- Ajudar-me. – Mergulha a cabeça nas mãos num pranto desesperado.

- Como queres que te ajude? Faço o que estiver ao meu alcance mas não vejo o que…

- Quero compreender. Como é que pôde fazer isto?

- Andamos todos assim, revoltados. Não creio que tenha sido por causa da vossa ruptura, se o que procuras é aplacar qualquer tipo de culpa.

(Culpa: sentimento pesado, opressor, asfixiante que nos torna reféns sem que consigamos definir o que nos prende.)

- Não me sinto culpado. Perdido, talvez. Mesmo com o recente afastamento… Não o considerava definitivo. Algo nos ligava. Ainda que não falássemos, nem nos víssemos. Ela estava em mim. No que fazia, no que pensava, nas minhas opções. Não se tratava apenas de desejo. Foder, fode-se com qualquer uma. Era um reencontro. Como se sempre tivéssemos feito parte um do outro.

- Tretas românticas. Desculpa dizer-to. Se assim era, como conseguiste ser tão racional? Se sentias isso tudo por ela, como te mantiveste passivo, ao lado de outra que, estou certa, também não merecia essa deslealdade? Repara, não estou a julgar-te. Mas tens de reagir homem. As coisas são o que são!

- A minha mulher sabia de tudo, Mariana. Não fui desleal com ela. Estava doente e fragilizada. Implorou-me para não a deixar. Senti que lhe devia isso. Já abdicara de tanto por nós…

- Que ilusão. Ter-te aprisionado por pena. Ter o teu corpo e não o teu ânimo. Três vidas desperdiçadas. Lamento. Compreendo o teu sofrimento, mas nada posso fazer.

- Podes. Sei que ficaste com a chave do apartamento dela. Deixa-me ir respirá-la e trazer algumas coisas.

- Que masoquismo. Tens a certeza? Não me importo de… Mas não será penoso demais ires lá?

- Preciso disto. Vou buscá-la e trago-a comigo. Viverei só de lembranças, se for capaz.

- Não sejas ingénuo. Sabes demasiadamente bem que a vida continua, não tarda terás filhos com a Celeste, o teu quotidiano retomará o seu ritmo conhecido e, mais tarde ou mais cedo, tudo parecerá ter sido um sonho.

- Não argumento contigo. Deixa-me lá ir. Tens tempo agora? - Olho para o relógio e confirmo que o posso fazer nessa altura. Coloco-lhe uma mão no ombro e seguimos em silêncio, a pé, para casa da Clara. Abro a porta e informo-o que voltarei dentro de duas horas.

- Fica à vontade. Se precisares de alguma coisa liga-me. Até já.

Não me responde. Parado, absorto, percorre com o olhar desconsolado a sala onde ainda se sente o perfume fresco da Clara. Faz-me tão mal entrar em casa dela, mas os pais foram incapazes de o fazer e incumbiram-me de dar um destino às suas coisas. Não sei por onde começar. Como a casa lhes pertence, vou deixar passar um tempo até iniciar a mais ingrata das tarefas: Desmantelar a presença da minha amiga no mundo. A companheira de toda uma vida.

O Luís nunca havia estado em casa da Clara. Tinham-se conhecido num aniversário de uma amiga comum e os seus encontros casuais, apesar de carregados de emotividade, jamais tinham sido materializados com algo mais do que carícias, abraços e beijos apaixonados. Afigura-se-nos ridículo. Tanto desespero por uma relação platónica que não teve tempo de ser consumada, muito menos consolidada. Quem, no entanto, os visse juntos entenderia que a harmonia daquelas duas almas era algo que transcendia o sexo.


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