domingo, 10 de outubro de 2010

 

INSANIDADE VOU-ME EMBORA

Voltaram atrás para me ajudar, naquele dia. Não era necessário. Perceber que não haviam sido indiferentes fora o real auxílio. Depois de terem passado, levantei-me com outro ânimo e apesar de não ter destino, o meu andar era então decidido e optimista. Com a ajuda de Deus certamente chegaria a algum lado. Não sei se ainda acredito n’Ele. Creio ainda, ou foi tão-só o hábito de O referir? Tempo houve em que rezava todas as noites. Desconheço se por devoção, ou desespero. Apercebo-me que nunca mais o fizera. Aconteceu. Dei por mim uma noite e já nada pedia antes de adormecer. Nada esperava. Já não conversava com Ele. Perdi-O?

Cruzei-me pelo caminho para nenhures com um cão. É preto de pêlo luzidio e sedoso. Orelhas encaracoladas e um ar maroto enganador que impossibilita determinar-lhe a idade. Os olhos e a vivacidade indicar-me-iam estar perante um cachorro. A postura de grande autonomia e cautela denotam maturidade canina, típica de idade mais avançada. Muito estranho este cão. Assim que me viu já não me largou. De início mantinha-se distante. Parava e retomava a marcha ao meu ritmo, encarando-me inquiridor. A primeira vez que lhe dei uma festa limitou-se a encostar a cabeça à minha perna, manteve-a baixa, como quem me queria assegurar: “Venho por bem.” Falo com ele e parece entender-me. Intriga-me a grande pelada no lado esquerdo, junto ao pescoço, revelando uma cicatriz. Diria que foi operado e, no entanto, nenhuma coleira. Desorientado não está, não se me afigura que busque outrem. A sua companhia tem sido um alento. Baptizei-o “Companheiro”. A simplicidade do nome escolhido fez-me rir com gosto. Eis que uma dificuldade que não posso ignorar me invade o pensamento. Se era complicado arranjar onde ficar, quando sozinho, o que será agora, com um cão à retaguarda? Não pretendo ser sem-abrigo como os que vi em muitas reportagens na televisão. Naquela noite aconteceu. Fui desapossado com um cão. Temos, modéstia à parte, bom aspecto, pelo que as pessoas que passavam por nós não denotavam qualquer receio. Há que convir, porém, que o cenário de um homem ainda novo, com uma mala de viagem com rodinhas e um cão sem coleira, vagueando em plena madrugada Lisboeta se afigurava, no mínimo, caricato. Não me importei. Na terra era o Nuno “maluco” o que me incomodava muito. Fazia-me sofrer. Aqui, ser anónimo confere-me segurança e imunidade à maldade alheia. Porque me quereriam atingir se me não conhecem?

Passámos a noite ao relento. Escolhi um jardim recatado. Retirei uma mantinha pequena da mala que coloquei no chão junto a uma estátua, recostei-me e sem que lhe desse qualquer indicação o Companheiro saltou-me para o colo, apoiando a cabeça no meu peito. Senti-me tão aconchegado que rapidamente adormeci e julgo que ele também. Há algo de protector neste canídeo. Terá ficado alerta toda a noite? Acredito que me velou o sono e ao acordar senti-me amparado como há muito não sucedia. Miraculosamente - Permaneço ignorando se ainda acredito Nele. - o dia seguinte revelou-se afortunado. Pela manhã, enquanto tomo o pequeno-almoço na pastelaria Suíça – um chocolate quente retemperador e uma torrada fumegante escorrendo manteiga. – descubro num jornal de distribuição gratuita um anúncio em que procuram um caseiro para um palacete no Guincho. Alguém que se responsabilize pela manutenção do jardim e zele pela segurança da casa durante as viagens dos proprietários. Saí da pastelaria e dei dois croquetes ao Companheiro que aguardava pacientemente do lado de fora. Dei-lhe água e arrepiámos caminho. Toda a vida quisera conhecer a Suíça, graças ao senhor Jacinto, amigo da minha mãe, que de cada vez que regressava desta cidade falava maravilhas do estabelecimento. Também referia, invariavelmente, os travesseiros de Sintra, onde hei-de ir. Parece que não é longe do Guincho para onde me dirijo e permanecerei se tudo me correr bem. No meu desnorte, enquanto abandonava aquela terra maldosa, guardei essas conversas. Poderia ter rumado a Sintra. Há aleatoriedade em qualquer escolha. No fundo, podia ter ido para qualquer lado. Não pertenço agora que a mãe se foi. Que seja Guincho, pois então. Não se tratou de necessidade o ter passado a noite ao relento. Não sou tolo a ponto de partir sem quaisquer recursos. A minha mãe tinha algum dinheiro guardado, o qual sabia onde estava. Jamais ousei mexer-lhe enquanto foi viva. Era dela, ganho arduamente em trabalhos demasiado pesados para a idade. Porém, comigo desempregado e sem perspectivas de deixar de o ser, o sacrifício dela era vital para que sobrevivêssemos. Não sou mandrião, sempre gostei de trabalhar mas não tenho tento na língua e constituía incómodo. Cheguei a ter namoradas – Gostava tanto da Margarida… - mas os pais tratavam de as proibir de se aproximar. Nenhum amigo também. Daí à total alienação foi um passo. Habituei-me à solidão. A mãe era o meu mundo, quando morreu nada mais me prendia àquele desterro. Assim trouxe o dinheiro amealhado. Na primeira noite longe, o relento foi escolha consciente e ponderada. Despojado de tudo quanto fora outrora conhecido, prometi-me uma vida nova. A presença do Companheiro reforçou o que sentia:

“Vou conseguir.”


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