domingo, 3 de abril de 2011

 

CLARA E LUÍS

Olho para as paredes. Avanço pela sala que ainda há pouco era a tua e sinto, ainda, um odor a ti no ar. O desalento do “nunca mais”. Nunca mais Clara? “Nunca mais” abalroa-me e quedo-me vencido. Uma mão imaginária implacável esmaga-me o coração que se molda entre esses dedos fictícios, cruéis. Nunca mais é tempo desmedido. Levanto-me com dificuldade e arrasto os pés até ao quarto. Escrevias. O que nos era comum. Abro a mesa-de-cabeceira, decerto construída pelo teu pai, em pinho, na oficina da casa de Sintra e eis que encontro, irrefutável, o registo de quem eras.

Pensei em não escrever o que se passou, simplesmente porque creio inverosímil que as palavras exprimam o que me sucedeu há duas noites. Afigurar-se-á banalidade. Soarei ridícula. Todavia, a excitação que sinto impele-me a fazê-lo. Deixar suspenso nestas folhas, o que me ficou gravado na memória, indelével. Este corpo que não volta a vibrar inteiro se o não posso ter colado a mim. Reciprocidade com um estranho em encontro fortuito. Podia não ter acontecido. Aconteceu e é, agora, irremediável.

Paro de ler. Sou feito de lágrimas. Não me exprimi quando podia. Por orgulho, receio, ou estupidez. Ouves-me agora? Alcança-te o meu desespero? A urgência em remediar o que não tem conserto? Deitado nesta cama, onde há dias se delineava o teu corpo e ainda “eras”, abandono-me ao desconsolo. À tragédia que se abateu sobre nós que já não podemos existir. A Mariana deve estar prestes a regressar. Folheio mais um pouco a tua escrita que é como quem diz folheio-te e eis que cai a folha dobrada. Perfumaste-a? Ou sonho o perfume teu? É-me dirigida. Porque não a enviaste? Mudaria alguma coisa?

Luís:

Gostava de compreender o que foi para ti o nosso encontro e o que teria sido ir longe demais, se o trilho percorrido se revela sem retorno? És feliz enquanto me renegas?

(…)

Podemos passar uma vida inteira sem nos vermos, que mesmo de olhos fechados, se algum dia me tocares de novo o cabelo, puxando-o como se o quiseras para ti, saberei que és tu, porque me reconhecerei no teu toque. Amo-te como amo o mar, platonicamente.

Toca a campainha. O tempo concedido passou lesto. Sobreviverei. Estou convicto, porém, que será perene este doer.

- Então Luís, estás bem?

- Não. Mas não te preocupes.

- Queres que te leve a algum lado?

- Não, obrigado. Quero agradecer-te o que fizeste por mim. Foi muito importante teres condescendido.

- Nada fiz de especial. Quem dera que tudo fosse diferente. Também sofro. Cada dia que passa a dor é maior. Espero que com o tempo este martírio atenue.

Depois deste dia não o tornei a ver. Soube, entretanto, que se separou da mulher e partiu em viagem pelo mundo.


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