quinta-feira, 5 de julho de 2012

 

Não sou um novo talento da literatura...(FNAC 2012)




...Tão pouco sou velho, ou de meia idade e talento é uma palavra que questiono amiúde. Sou trabalhadora. Posso afirmá-lo. Tenaz. Idem. Deixo-vos com o meu "VER", por episódios, para a coisa render. Aquele abraço aos que me acompanham.

Um dia.
Um dia o papel.
Tenho a certeza.


"VER" - PARTE I (Hotel AXIS VERMAR, para as Correntes d'Escritas 2012, 23-02-2012)

Tenho frieiras, não pinto. O sangue nota-se na tela. O óleo fende-se como as mãos. Vou tomar banho. O necessário: sabonete, champô do hotel do último número, roupa limpa. É importante não descuidar o asseio. Quando deixa de ser relevante estou perdido. Se não posso pintar o tempo empastela. As horas esticam e o sol custa a pôr-se. Limito-me ao básico. Respirar. Dormir. Comer. Não sei ser de outro modo. Dias há em que o dinheiro é curto e não compro material, nem pancas. Os pincéis apropriados e as tintas certas roubam-me à boca. Alterno entre o alimento de que o corpo carece e esse que me nutre o espírito. Equilíbrio precário. As vontades colidem; já roí cabos aos pincéis e provei diluente. Magoa-me que não olhem para os quadros. Passam acelerados, desprezando as cores. Há dias, inventei uma. Nunca a vi antes e conheço bem as matizes. Dei-lhe o nome «Ver». Entre o verde e o vermelho, todavia, nem um, nem outro, tão-pouco outra cor qualquer. O meu legado. Divertido pensar que a deixo ao mundo, quando esse me ignora. Capaz de me dissuadir da pintura? A morte. Dar-me-ia jeito vender alguns quadros, para viver da arte. O que me convém, pouco interessa aos demais. Maldito frio. O sangue mais espesso nas veias, cada articulação dói ao mexer. Apaixona-me retratar a Rua que clamo minha. Monocromática. Caiu-lhe balde divino de tinta cinzenta. Todos os dias lhe encontro novo detalhe. Acrescento-lhe cores. Há diferença entre o que as coisas são e como as percepcionamos. Creio que ninguém sabe como são as coisas. O que nos chega não é o que foi emitido. Interferências minúsculas, inevitáveis. Prédios com andares sobejando; veículos mal estacionados; calçada portuguesa camuflada a dejectos de cão; escarros humanos; transeuntes que não me encaram. É a Rua mais bonita que conheço. Cheira a tubos de escape e a plátanos. A tosse é alérgica. Desconheço se aos pólenes, ao monóxido de carbono, ou à humidade.

Pintei a "ALERGIA" e ninguém o comprou, como aos outros em filas de expectativa. É um nariz com muco de pulmões infectados. Nojento, admito. Ficou para a colecção particular que se compõe de tudo o que criei. Quando se demoram um pouco, observam pelo rabo do olho para que não os interpele. Labuto no que não gosto para me sustentar. Especialista em inutilidades. Quem me contrata não necessitaria de mim, fossem outras as circunstâncias.


Andreia Azevedo Moreira, Fevereiro 2012.


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