terça-feira, 10 de julho de 2012

 

«VER» - PARTE IV

«Quantos vendeu?» «Nenhum.» «Nenhum?» «Isso.» «Fico-lhe com um. Recorda-se no outro dia, disse-lhe que voltava? Quando regressei, não o vi.» «Devo ter ido tomar banho. O odor é insuportável» «Que bom que o reencontrei. Quero levar um dos seus quadros.» «Porquê?» «Agrada-me que se transformem. Já não me parecem os mesmos do outro dia. E mesmo então, enquanto os observava, animados!» «São os mesmos. Garanto. Estão aqui os que pintei nos últimos meses. Tinha mais. Roubaram-mos.» Voltou a pegar no quadro da flor tosca e passou-mo, como se não houvesse outras opções. O dos carros, por exemplo. Oferecê-lo-ia ao meu sobrinho, porém, não se afigurou assunto passível de debate. Fosse a flor, o objectivo não era decorar paredes. «São 35.» «Porque leva tão pouco?» «Quer pagar mais?» «Seria justo. Paguei mais por um de inferior qualidade.» «Nestas condições fico satisfeito por tê-la aqui mais tempo que o que demoraria a passar.» «O que pede mal dá para cobrir as despesas com os materiais, quanto mais para viver.» Respondeu que não era da minha conta, que pagasse e lhe concedesse a calma necessária. Não foi rude, antes peremptório. Comprei-lhe o primeiro quadro. A minha relação tinha começado a morrer e achei curioso que a flor tivesse murchado, depois de pendurada no escritório. Passávamos horas em silêncio. Se havia conversação era sobre logística e quotidiano, jamais sobre o nosso moribundo caso de amor. Fodíamos por despeito. No final cada uma seguia dormindo, como se o interregno não passasse de fome, ou vontade de urinar. Era devastadora a existência sem beijos de língua. Conseguia quantificar o frio que o Pedro identificara. «É o frio não meteorológico.», dizia-me no seu modo de conversar radiofónico.

Andreia Azevedo Moreira, Fevereiro de 2012.

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