quarta-feira, 11 de julho de 2012

 

«VER» - PARTE V

Alguém levou um dos sacos. Distraí-me ao comprar uma tosta de queijo e um sumo de pêra no café ao lado. Tempo bastante. Prejuízo imenso. Se apanho o responsável... Que deslealdade. Desconfio quem possa ter sido, mas não vou bradar um nome, sem certezas. Não faço telas que se assemelhem. Trata-se de ausência definitiva, se não apanhar o ladrão.

Ah ah. Luzes não há, fecham-se portas. Ninguém acode. A merda do tinóni dá-me cabo da cabeça! Azul. Caralho, os pincéis? Tão macios. Amarelos. Ah ah. Estás a olhar? Mostro-te? Corada nina? Vem dar festas ao pincel. Roxo. Ai, gajas esticadinhas. Arfa a cadela lavadinha. Eu monte de esterco. Porque atendes? Idiotas. A minha vida é tão importante, com estes saquinhos vou para lado nenhum, cheio de pressa e vazios. Vão ver. Ver? Ah ah. Não sabem. Cale-se Pedro… Isso é só seu. Ninguém descobre. Só você sabe como se faz. Chiu… Ó Hélder vou-te à tromba. Ficas sem o dentinho. Vais ver… Ah ah. Descansa aí velho. Os sacos? O preto, o de pano, o do supermercado. Sete, oito, treze.

Quando passava perto da Rua espreitava, na esperança de o encontrar em acção. Nunca esquecia aquele lugar e procurei-o incessantemente durante as três semanas em que tardou revê-lo. A flor era húmus. Desaparecera, o que me atormentava porque a relacionava comigo e com o presente desprovido de vontades. «Porque é que escolheu o da flor?» «Desculpe? Conheço-a?» «Está a brincar? Comprei-lhe um quadro há um mês. A sua primeira venda segundo me disse. Já o esqueceu?» «Ah. Sim. Perdoe-me. Claro que me lembro de si. Não me recordo é dos dias a seguir…» «Pode dizer-me?» «O quê?» «Porquê especificamente aquele? Sabe que entretanto desapareceu? Está tudo preto em baixo e avermelhado, onde havia corola.» «Não sei o que lhe dizer. Peguei nesse por gentileza, por ser a primeira a dispor-se a pagar pela minha arte e por ser uma senhora.» «Como explica a alteração na tela?» «Na memória o quadro permanece como lho entreguei.» «Não me lixe. Vai dizer-me que não sabe que as suas pinturas se alteram? Essa… Os carros já não parecem na mesma posição. O do número na porta estava mais abaixo, na sequência.» «Garanto-lhe que uso os melhores materiais. É impressão sua. Tem medido a tensão? Anda a tomar algo que lhe altere os sentidos?» «Era o que mais faltava. Não sei qual é o truque, mas está a pôr-me maluca.» «Acalme-se. Nada tenho a ver com isso. A senhora armou-se em boazinha apreciadora de pintura e comprou-me um quadro, tendo aceitado, sem argumentar, aquele que lhe passei.» «Teve intenção de me transmitir algo.» «Ser gentil. Uma flor para uma flor. Desconhece o lugar-comum? Não me mace. Tenho muito que fazer. Vai mudar o tempo e serão horas, se não mesmo dias, sem poder criar. Desapareça.» «Desculpe. Ando enervada. Deixe-me voltar outro dia, por favor, para conversarmos.» «Sou pouco amigo de conversas.» «Toda a gente gosta de conversar.» «Quem é que se julga para falar por “toda a gente”? Eu não aprecio. Aviso-a que não volte para isso, a não ser que queira comprar.» «Volto outro dia, para conversarmos.» O Pedro bufou e não respondeu. Deitou-se sobre o cotovelo direito, enquanto a mão esquerda se concentrava noutra paisagem urbana.

Andreia Azevedo Moreira - Fevereiro / Março de 2012.

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