quinta-feira, 12 de julho de 2012

 

«VER» - PARTE VI

O estômago não se compadece, grita-me que vá comer. Não penso noutro assunto. Carrego os sacos enquanto vagueio. Posso querer dar um retoque, ou alterar algum pormenor. Como não lhes dou tempo, nem espaço suficientes para secarem, alguns colam-se ao da frente e o resultado tanto me pode arrebatar, como ser desastroso. Inconcebível é deixá-los para traz. Inclusive aos que não prestam. Não sei como começou. Não encontrava rumo, debrucei-me para carris em inúmeras gares até que uma tela que me custou 1,5 numa loja de bagatelas, adquirida sem motivo aparente, me devolveu determinação ao acordar. No dia seguinte tinha firmado objectivo: arranjar os restantes materiais. Não sabia o que usar na tela. A primeira papelaria que encontrei tinha uma caixa de madeira na montra, revelando-me os Van Gogh coloridos. Para os pincéis solicitei a ajuda do empregado que, não tendo sido simpático, soube ser profissional. Deu-me as dicas essenciais sobre a técnica. Recomendou-me bibliografia que nunca adquiri, por falta do principal. Quando detinha tudo o que precisava para pintar deparei-me com novas dificuldades: como e o que pintar? O “como” era aterrador. Iria decerto desperdiçar material e saber-me inepto para criar algo que prestasse. Passei a primeira manhã imóvel, com o material espalhado defronte, encandeado de medo. Olhava para as mãos desconhecendo a qual recorrer. Sopesei os pincéis, acariciei-os, cheirei o óleo de linho, imaginei como estaria aquela paleta intocada horas mais tarde. Ensaiei pinceladas. Nada demovia o pavor. A noite caiu e não produzi um risco. Deitei-me frustrado e enraivecido com a cobardia. Haveria de conseguir passar as ideias que tinha, para aquelas superfícies que me aguardavam inertes. Havia que correr riscos. Para chegar a qualquer resultado tinha de me aventurar a fazer asneiras, mesmo que significasse não poder alimentar-me, não tomar banho, ou arranjar pancas. Dificuldades pelas quais estava disposto a passar. Havia apelo subjacente, o qual cria essencial. Desviava-me da queda. Conservo a primeira tela. Acompanhar-me-á como troféu da evolução sentida. Era grosseiro, inexperiente, ingénuo. Amálgama de cores desprovida de sentido. Não me envergonha. Quando pequenos não sabemos ler, nem escrever. Ensinam-nos as vogais, as consoantes e a juntá-las. Orientam-nos pelos sons, pelos significados e eis que um dia há um mundo novo que se nos oferece pelas palavras. Quanta saudade de ler… Eis o vivi com a pintura: Universo incólume, ao qual aprendi sozinho a juntar cor, símbolos, movimento. Lugares em que me perco e me afasto do que dói. Quando trabalho evado-me. Gosto de lhe chamar liberdade.

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