domingo, 22 de julho de 2012

 

«VER»

Tenho frieiras, não pinto. O sangue nota-se na tela. O óleo fende-se como as mãos. Vou tomar banho. O necessário: sabonete, champô do hotel do último número, roupa limpa. É importante não descuidar o asseio. Quando deixa de ser relevante estou perdido. Se não posso pintar o tempo empastela. As horas esticam e o sol custa a pôr-se. Limito-me ao básico. Respirar. Dormir. Comer. Não sei ser de outro modo. Dias há em que o dinheiro é curto e não compro material, nem pancas. Os pincéis apropriados e as tintas certas roubam-me à boca. Alterno entre o alimento de que o corpo carece e esse que me nutre o espírito. Equilíbrio precário. As vontades colidem; já roí cabos aos pincéis e provei diluente. Magoa-me que não olhem para os quadros. Passam acelerados, desprezando as cores. Há dias, inventei uma. Nunca a vi antes e conheço bem as matizes. Dei-lhe o nome «Ver». Entre o verde e o vermelho, todavia, nem um, nem outro, tão-pouco outra cor qualquer. O meu legado. Divertido pensar que a deixo ao mundo, quando esse me ignora. Capaz de me dissuadir da pintura? A morte. Dar-me-ia jeito vender alguns quadros, para viver da arte. O que me convém, pouco interessa aos demais. Maldito frio. O sangue mais espesso nas veias, cada articulação dói ao mexer. Apaixona-me retratar a Rua que clamo minha. Monocromática. Caiu-lhe balde divino de tinta cinzenta. Todos os dias lhe encontro novo detalhe. Acrescento-lhe cores. Há diferença entre o que as coisas são e como as percepcionamos. Creio que ninguém sabe como são as coisas. O que nos chega não é o que foi emitido. Interferências minúsculas, inevitáveis. Prédios com andares sobejando; veículos mal estacionados; calçada portuguesa camuflada a dejectos de cão; escarros humanos; transeuntes que não me encaram. É a Rua mais bonita que conheço. Cheira a tubos de escape e a plátanos. A tosse é alérgica. Desconheço se aos pólenes, ao monóxido de carbono, ou à humidade. Pintei a “ALERGIA” e ninguém o comprou, como aos outros em filas de expectativa. É um nariz com muco de pulmões infectados. Nojento, admito. Ficou para a colecção particular que se compõe de tudo o que criei. Quando se demoram um pouco, observam pelo rabo do olho para que não os interpele. Labuto no que não gosto para me sustentar. Especialista em inutilidades. Quem me contrata não necessitaria de mim, fossem outras as circunstâncias.


A primeira vez que o vi, estava debruçado sobre um muro baixo. Não identifiquei o que fazia, apenas as costas curvadas e a azáfama dos movimentos. O autocarro avançou e revelou-me pincéis, tubos de tinta, telas, paleta e sacos de onde retirava mais objectos. Interrompia-se para olhar o céu. Ajustava a posição do corpo com o ângulo em que a luz incidia no plano. A paleta era mescla horrorosa. Afigurava-se impossível sair tom que prestasse. Encantou-me o despudor. Quando escrevo, envergonho-me dos olhares alheios. O Pedro era generoso a trabalhar. Expunha-se. Constrangia-me imaginá-lo nu. A pintura não me arrebata. Os quadros pendurados nas paredes de nossa casa haviam sido impulsos da Madalena em exposições. Habituei-me a que me espreitassem das paredes, mas a relação nunca deixou de ser estranheza. Os dele falam comigo por revelações. Como se, se pintassem a cada passagem. Flor que de véspera não achei. Mancha no solo que se fez ao cair da noite; candeeiro apagado que se acendeu. Pensava muito nele e, ultrapassado o receio, interpelei-o. Fez pouco caso da minha presença. Nessa hora de desprezo, observei-o minuciosa. Muito mais do que aos quadros, os quais encarei com a ignorância habitual. Homem de porte principesco tinha o cabelo pelos ombros, risco ao lado. Os olhos castanhos pareciam desfocados. Como se uma névoa lhe impedisse a limpidez no olhar. Barba mal aparada, o nariz grande. As roupas eram as adequadas à altura do ano, embora parecessem saídas de baú de roupa dos anos sessenta. A voz maravilhosa, qual locutor de rádio. Seria ouvinte a vida toda daquele timbre. Misturava tintas para usar no quadro com carrinhos coloridos que subiam rua de cidade, embora se assemelhassem a carros de Fórmula-um. Havia subtileza a distingui-lo. Perdi-me na amálgama de lata fictícia, como a personagem da Travers. «A senhora o que deseja?» Arrancou-me à criança de outrora. «Estou a ver.» «Todos o dizem.» Retorquiu conformado. Passou-me um quadro de moldura dourada com uma flor. Senti-lhe o peso, avaliei os relevos e devolvi-lho. Questionei-o sobre o preço. «35» e continuou as pinceladas como se eu uma aragem. Estava incrédula. Pagara dez vezes mais por um de uma finalista de Belas Artes. Como se considerava tão mal? Sabia o suficiente para perceber a mestria daquele homem. «Não tenho dinheiro comigo.» «A Senhora passe quando quiser.» Intui-lhe o descrédito. Peguei no sobretudo branco que ia deixar à lavandaria com a convicção, que ele não tinha, de voltar.


As pessoas a passarem inspiram-me. Se as não retrato é vingança. Há os que vão de cara fechada, vendo nos outros dívida irrecuperável; outros sorriem de auscultadores postos; alguns envergam óculos escuros que cortam lágrimas, o brilho a descer denuncia-os; há crianças a ocultarem o que as assola porque as gargalhadas sobrepõem-se-lhe; velhos passeiam cães-pessoa que lhes fazem companhia; carteiristas contam dinheiro alheio em esgares que são malícia e ingenuidade; vejo pares de mãos dadas que me irritam, de tão colados levam os lábios; há quem fale consigo, maxilar fundido, longe de mim e do mundo; dirijo-me a uma mulher de casaco pendurado em braços desistentes. Finge interesse pelo meu trabalho. Capto-lhes o ânimo e verto-o nos automóveis, nas ervas, nas árvores, nos candeeiros. Instantes da Rua. Cores para o pavimento, para o céu, o betão e as folhas. As janelas abrem-se, ou fecham, consoante o que lhes pressinto. Não é honesta a pilhagem. Sento-me durante horas. Contemplo. Estudo as naturezas díspares. Passou uma mulher, corria aflita. Batiam-lhe os sacos nas pernas. Ela tropeçava e abrandava a marcha, mas não a interrompia. Eram pernas longas e bonitas, as quais desejaria seguir e outro verbo que rima com este. Nessa tarde o primeiro carro. Esquiço a grafite. As tintas vêm depois. Imaginei pneu largo, borracha grosseira, câmara-de-ar possante para aguentar velocidades. Nasceram jantes luzentes, como imagino deverem ser as dos bons carros. À estrutura qui-la robusta, aspecto de rasgar o ar. Não me furtei ao banal: pintei-o de vermelho, desenhei-lhe o número quatro na porta. O primeiro de dez que criei. Todos trepando para o céu, a desdenharem do asfalto costumeiro, por não gostarem de estradas. Renegam caminhos projectados por terceiros. Popós? Pom! Pom! Entre o quarto e o quinto descobri a minha cor. Acaso como o acontecimento que me pode fazer feliz, ou miserável. Não dormi nessa noite com dores no corpo. Ouvia o barulho nocturno do trânsito; dos semáforos que vão do verde ao vermelho; dos bêbados que riem alto e cantam mal. Podia ter acabado e teria legado recordação aos que não tenho. Tive uma mulher paixão que me esqueceu. Se me esqueceu não existo. Não existo não sou e amante não é palavra. É dor. Agulha de crochet na aorta. Pedregulho que emerge em todos os quadros que pinto. Repare-se: dez viaturas, o céu e o calhau no canto inferior à esquerda. Sinto-lhe a falta e do verdete de pedra escorregadia; da aresta em que abri o perene lanho. No quadro da flor era cascalho em fundo. Pequenitas pedras pretas a suportá-la. No do plátano carregado de pardais que falam não se vê, de tão enterrado entre raízes. Há rochedos nos olhos do cão gigante que tombou. A dureza está no que faço. Nos sonhos, até, que deviam ser de algodão. Ligo-lhe. Atende, ouço-a respirar. Assente: inspira, expira. Um “tou” que não é descuido. Dois minutos. O suficiente. O tilintar. Depois o silêncio. A porta em fole a chiar atrás de mim.


«Quantos vendeu?» «Nenhum.» «Nenhum?» «Isso.» «Fico-lhe com um. Recorda-se no outro dia, disse-lhe que voltava? Quando regressei, não o vi.» «Devo ter ido tomar banho. O odor é insuportável» «Que bom que o reencontrei. Quero levar um dos seus quadros.» «Porquê?» «Agrada-me que se transformem. Já não me parecem os mesmos do outro dia. E mesmo então, enquanto os observava, animados!» «São os mesmos. Garanto. Estão aqui os que pintei nos últimos meses. Tinha mais. Roubaram-mos.» Voltou a pegar no quadro da flor tosca e passou-mo, como se não houvesse outras opções. O dos carros, por exemplo. Oferecê-lo-ia ao meu sobrinho, porém, não se afigurou assunto passível de debate. Fosse a flor, o objectivo não era decorar paredes. «São 35.» «Porque leva tão pouco?» «Quer pagar mais?» «Seria justo. Paguei mais por um de inferior qualidade.» «Nestas condições fico satisfeito por tê-la aqui mais tempo que o que demoraria a passar.» «O que pede mal dá para cobrir as despesas com os materiais, quanto mais para viver.» Respondeu que não era da minha conta, que pagasse e lhe concedesse a calma necessária. Não foi rude, antes peremptório. Comprei-lhe o primeiro quadro. A minha relação tinha começado a morrer e achei curioso que a flor tivesse murchado, depois de pendurada no escritório. Passávamos horas em silêncio. Se havia conversação era sobre logística e quotidiano, jamais sobre o nosso moribundo caso de amor. Fodíamos por despeito. No final cada uma seguia dormindo, como se o interregno não passasse de fome, ou vontade de urinar. Era devastadora a existência sem beijos de língua. Conseguia quantificar o frio que o Pedro identificara. «É o frio não meteorológico.», dizia-me no seu modo de conversar radiofónico.


Alguém levou um dos sacos. Distraí-me ao comprar uma tosta de queijo e um sumo de pêra no café ao lado. Tempo bastante. Prejuízo imenso. Se apanho o responsável... Que deslealdade. Desconfio quem possa ter sido, mas não vou bradar um nome, sem certezas. Não faço telas que se assemelhem. Trata-se de ausência definitiva, se não apanhar o ladrão.

Ah ah. Luzes não há, fecham-se portas. Ninguém acode. A merda do tinóni dá-me cabo da cabeça! Azul. Caralho, os pincéis? Tão macios. Amarelos. Ah ah. Estás a olhar? Mostro-te? Corada nina? Vem dar festas ao pincel. Roxo. Ai, gajas esticadinhas. Arfa a cadela lavadinha. Eu monte de esterco. Porque atendes? Idiotas. A minha vida é tão importante, com estes saquinhos vou para lado nenhum, cheio de pressa e vazios. Vão ver. Ver? Ah ah. Não sabem. Cale-se Pedro… Isso é só seu. Ninguém descobre. Só você sabe como se faz. Chiu… Ó Hélder vou-te à tromba. Ficas sem o dentinho. Vais ver… Ah ah. Descansa aí velho. Os sacos? O preto, o de pano, o do supermercado. Sete, oito, treze.


  Quando passava perto da Rua espreitava, na esperança de o encontrar em acção. Nunca esquecia aquele lugar e procurei-o incessantemente durante as três semanas em que tardou revê-lo. A flor era húmus. Desaparecera, o que me atormentava porque a relacionava comigo e com o presente desprovido de vontades. «Porque é que escolheu o da flor?» «Desculpe? Conheço-a?» «Está a brincar? Comprei-lhe um quadro há um mês. A sua primeira venda segundo me disse. Já o esqueceu?» «Ah. Sim. Perdoe-me. Claro que me lembro de si. Não me recordo é dos dias a seguir…» «Pode dizer-me?» «O quê?» «Porquê especificamente aquele? Sabe que entretanto desapareceu? Está tudo preto em baixo e avermelhado, onde havia corola.» «Não sei o que lhe dizer. Peguei nesse por gentileza, por ser a primeira a dispor-se a pagar pela minha arte e por ser uma senhora.» «Como explica a alteração na tela?» «Na memória o quadro permanece como lho entreguei.» «Não me lixe. Vai dizer-me que não sabe que as suas pinturas se alteram? Essa… Os carros já não parecem na mesma posição. O do número na porta estava mais abaixo, na sequência.» «Garanto-lhe que uso os melhores materiais. É impressão sua. Tem medido a tensão? Anda a tomar algo que lhe altere os sentidos?» «Era o que mais faltava. Não sei qual é o truque, mas está a pôr-me maluca.» «Acalme-se. Nada tenho a ver com isso. A senhora armou-se em boazinha apreciadora de pintura e comprou-me um quadro, tendo aceitado, sem argumentar, aquele que lhe passei.» «Teve intenção de me transmitir algo.» «Ser gentil. Uma flor para uma flor. Desconhece o lugar-comum? Não me mace. Tenho muito que fazer. Vai mudar o tempo e serão horas, se não mesmo dias, sem poder criar. Desapareça.» «Desculpe. Ando enervada. Deixe-me voltar outro dia, por favor, para conversarmos.» «Sou pouco amigo de conversas.» «Toda a gente gosta de conversar.» «Quem é que se julga para falar por “toda a gente”? Eu não aprecio. Aviso-a que não volte para isso, a não ser que queira comprar.» «Volto outro dia, para conversarmos.» O Pedro bufou e não respondeu. Deitou-se sobre o cotovelo direito, enquanto a mão esquerda se concentrava noutra paisagem urbana.


O estômago não se compadece, grita-me que vá comer. Não penso noutro assunto. Carrego os sacos enquanto vagueio. Posso querer dar um retoque, ou alterar algum pormenor. Como não lhes dou tempo, nem espaço suficientes para secarem, alguns colam-se ao da frente e o resultado tanto me pode arrebatar, como ser desastroso. Inconcebível é deixá-los para traz. Inclusive aos que não prestam. Não sei como começou. Não encontrava rumo, debrucei-me para carris em inúmeras gares até que uma tela que me custou 1,5 numa loja de bagatelas, adquirida sem motivo aparente, me devolveu determinação ao acordar. No dia seguinte tinha firmado objectivo: arranjar os restantes materiais. Não sabia o que usar na tela. A primeira papelaria que encontrei tinha uma caixa de madeira na montra, revelando-me os Van Gogh coloridos. Para os pincéis solicitei a ajuda do empregado que, não tendo sido simpático, soube ser profissional. Deu-me as dicas essenciais sobre a técnica. Recomendou-me bibliografia que nunca adquiri, por falta do principal. Quando detinha tudo o que precisava para pintar deparei-me com novas dificuldades: como e o que pintar? O “como” era aterrador. Iria decerto desperdiçar material e saber-me inepto para criar algo que prestasse. Passei a primeira manhã imóvel, com o material espalhado defronte, encandeado de medo. Olhava para as mãos desconhecendo a qual recorrer. Sopesei os pincéis, acariciei-os, cheirei o óleo de linho, imaginei como estaria aquela paleta intocada horas mais tarde. Ensaiei pinceladas. Nada demovia o pavor. A noite caiu e não produzi um risco. Deitei-me frustrado e enraivecido com a cobardia. Haveria de conseguir passar as ideias que tinha, para aquelas superfícies que me aguardavam inertes. Havia que correr riscos. Para chegar a qualquer resultado tinha de me aventurar a fazer asneiras, mesmo que significasse não poder alimentar-me, não tomar banho, ou arranjar pancas. Dificuldades pelas quais estava disposto a passar. Havia apelo subjacente, o qual cria essencial. Desviava-me da queda. Conservo a primeira tela. Acompanhar-me-á como troféu da evolução sentida. Era grosseiro, inexperiente, ingénuo. Amálgama de cores desprovida de sentido. Não me envergonha. Quando pequenos não sabemos ler, nem escrever. Ensinam-nos as vogais, as consoantes e a juntá-las. Orientam-nos pelos sons, pelos significados e eis que um dia há um mundo novo que se nos oferece pelas palavras. Quanta saudade de ler… Eis o vivi com a pintura: Universo incólume, ao qual aprendi sozinho a juntar cor, símbolos, movimento. Lugares em que me perco e me afasto do que dói. Quando trabalho evado-me. Gosto de lhe chamar liberdade.


«Olá. Como está? Tem pintado?» Não obtive resposta. Tentei entabular conversa mas não me deu saída. Sentei-me perto dele a observá-lo. Estava a ser intrusiva. Fosse comigo e já teria ripostado, ou virado costas, mas o tratamento que ele me aplicava era pior. Agia como se conhecimento nenhum da minha presença. Era a sua única cliente, como se dava ao luxo de me destratar? Assim estivemos mais de um par de horas. Dedicava-se a desenho indefinido e não arredei pé, como que encantada. Não tinha vontade de voltar para casa e também por isso me demorava, como podia. Estava demasiado infeliz. O Pedro juntava tinta, escurecia o que me pareciam pedras, enquanto eu chorava lamentando o que não dizia à Madalena. Partilhava com aquele estranho o que não confidenciava aos meus amigos mais queridos. Dei por mim, um fim de tarde, com vontade de o agarrar. Há anos que não estava com um homem e pareceria inconcebível apetecer-me aquele. À medida que desabafava, maior a vontade de lhe tirar a roupa, encostá-lo à porta daquele prédio e usá-lo como a um auxiliar de prazer com maior substância. Antes da Mada mudava de namorado todos os meses. Desacerto que não estava relacionado com a maneira de ser deles, ou de me amarem. Ao conhecê-la melhor entendi que até aí me escapara o Amor. O presente era outro, sentia desnorte inenarrável e aquela pessoa tinha vindo reavivar todas as dúvidas que me atormentavam nos últimos meses. «Maldita flor.» Ao entrar em casa vi que a Madalena estava a ler e que não ergueu a cabeça. Uns tempos antes não só se teria levantado, como me teria enchido de beijos. Foi uma sorte o esforço com que ergueu o sobrolho e disse: «Então?» Então. Ao que chegámos. Contei-lhe a origem do quadro apesar do desinteresse agressor. Falei-lhe do artista e da inusitada vontade que me deu depois de passar tanto tempo com ele. Limitou-se a encolher os ombros e a esclarecer que éramos livres. Não estava preocupada. Ou porque me achasse incapaz do desvario, ou porque se tratava de assunto que já não queria seu. A angústia alimentava-se-me da garganta. A almofada não me serenava. A situação tornava-se incomportável. Não conseguia agir e parecia-me injusto que ela o não fizesse se partira dela o afastamento. Dia 13 de Fevereiro, Sexta-feira, chegou a casa diferente. Não me deu explicações, não mentiu, recusou-se a dizer-me o que se passava perante as súplicas que multipliquei pelos dias e permanecemos estranhas, enquanto o permiti. Era doloroso, porém, menos que um afastamento físico derradeiro. Talvez se lhe desse espaço e tempo, voltasse a si. A nós. Não aconteceu. A autoestima carcomia-se-me de questões, ciúme e temores. A voz nunca firme. Interpelava-a com medo, como se qualquer atitude pudesse despoletar a sua partida, a qual me julgava inapta para suportar. Qual das duas pior? Ela e o seu silêncio egotista, ou eu vitimizando-me inerte. Nada fiz para esclarecer a questão. A maioria busca o motivo. Revista bolsos, lê mensagens, fareja essências. Não fui maioria. Propunha-me sobreviver à crueza daquela indiferença, almejando que o pesadelo cessasse por si. Saía para o emprego, ao fim do dia procurava o Pedro, adiando o regresso para cada vez mais tarde. Impunha limite ao masoquismo, enquanto tentava curar o desamor em que voluntariamente me soterrara. Inúmeros solilóquios depois, já perdera a esperança no retorno, o Pedro interveio. «Não sou exemplo. Também vivo das migalhas da atenção alheia. Mas ouvindo-a alcanço que isso que vive é solidão maior do que a minha. Porque não vira costas?» «Não consigo. Amo-a. Não concebo estar longe.» «Não sente falta de ar? A angústia mata. Um momento tão-só e esse nó na garganta passa-lhe para o coração, depois para as mãos, ou para os pés e quando der por si está a bater com um cano frio no céu-da-boca, ou a atravessar fora da passadeira numa rua movimentada. Ninguém lhe merece isso. Embora não seja exemplo, tenho descoberto mais em mim, actualmente, que nos anos todos em que me andei alimentar dos outros. Eis o que faz. Põe nos ombros da sua companheira a responsabilidade pelo seu bem-estar. Não há fardo maior, ou injustiça, para alguém que clamamos amar. Ela já não lhe pode dar amor. O que pretende? Piedade? Conseguirá viver disso? Não desista do sentimento maior. Nem eu que sou como vê, o fiz. Tenha juízo. Pegue nos seus haveres e faça-se à vida.» A sua entoação desobscureceu-me as ilusões e o estar a apagar, ingloriamente, dias do calendário. Quis comprar-lhe outra obra, em jeito de agradecimento. Não consentiu. «Volte noutro dia. Hoje não vendo. Fique-se com o que lhe disse se lhe servir, ou livre-se das minhas palavras, se conseguir. Noutro dia traga 35. Não alterarei o valor.» Nessa noite não aguardei que levantasse os olhos do que estava a fazer, pois não era importante que participasse do acto que seria meu. Ela que se envergonhasse da hipocrisia que lhe servia de pele. Para mim chegara ao fim o jugo. O amor não pode saber a grades, nem a pânico. Há muito que o que sentia por ela era de índole diferente. A segurança com que me atacava, há meses, deu lugar a desconcertante pranto. Outrora seria a reacção desejada. Naquela hora constrangia-me a falta de carácter. Destratara-me; irritava-a a carência com que a abordava; o meu odor nauseava-a; o sexo comigo dava-lhe sono e à data: «Meu amor para aqui. Não nos precipitemos para ali. Tens outra pessoa?» Vontade de rir. «Não estúpida. És tu quem tem.» Quis dizer. «Percebi que não é relevante já não gostares de mim, desde que eu goste.» Disse. «Não te quis contar para não te magoar. Quis evitar precipitações.» Agradeci-lhe sardónica o altruísmo e os dias estupendos passados sob a sua clemência. «Vai-te foder. Acabamos aqui.» Arrumei o pouco que tinha levado para aquela casa e no próprio dia parti. «Vais para onde? Não leves tudo. Acalma-te.» Não estava nervosa.


O cheiro nas mãos massacra. Todas as noites me limpo, como consigo, da criação do dia. Seria difícil a outrem privar comigo, só aquela mulher não se importa. A cada encontro se afoita mais. Incomoda-me a proximidade. Há uns dias tocou-me no cabelo. Gesto desagradável. Repeli-a com brusquidão e não o repetiu.


Pousei-lhe a mão no pescoço. Colocou a sua por cima, agarrou-me o indicador acariciando-o e devolveu-ma cuidadosamente ao colo. Prosseguiu pintando, como que ignorante quanto ao que sucedera. Era-me benéfica a sua presença. Perto dele o silêncio não era vazio a preencher. Dava-me gozo pensar que as pessoas da minha vida desconheciam a importância que aquele homem tinha em mim. Era realidade que a ninguém mais dizia respeito. Aluguei uma casa pequena, por mobilar, na cidade, afastando-me dos arredores e das recordações. Todos os quinze dias comprava um quadro e rapidamente as paredes brancas deram lugar a mosaico criativo por Pedro S.A. Períodos de tempo houve em que desapareceu. Não havia maneira de o localizar. Quando o reencontrava, alegava amiúde não se recordar dos dias anteriores e que tinha andado a colorir outras paragens. Havia falsidade na afirmação. A cada desaparecimento a sua colecção mantinha-se inalterada e era somente nos tempos em que o seu paradeiro me era conhecido que novos se me revelavam. Não fazia questão que ele percebesse que não cria nas suas mentiras. Não temos de saber tudo sobre quem gostamos. Aprendera-o com ele. «Porque não usas o dinheiro também em roupa?» «A que tenho cumpre a função.» «Tens-te alimentado?» «Pareço-te magro?» Preocupações comezinhas iam minando o meu pensamento, não tão descomprometido quanto antes. Não era retribuída na domesticidade. «Queres ficar lá em casa?» «Não.» A posse. Quando se dá por ela já deteriorou a relação mais sólida, quanto mais uma construída de encontros fortuitos no meio da rua. Nunca embarcou no entusiasmo.


Paralelepípedos. Justos na sua particular irregularidade. Partículas que brilham. Uma formiga segue entre beatas com migalha nas tenazes. Perco-a perto do olho. Passo a mão pelo frio da calçada. Encosto mais o ouvido e sinto o tremor que o trânsito causa. A perna esquerda soergue-se para seguir caminho sozinha. Não gosta do frio. Do desconsolo. A cara colou-se à pedra que a morde. A saliva não é minha, extravasa em poça de fuga ao que sou. O fôlego esparso mas teimoso. Não desisti. Imponderável fê-lo por mim. Lamento. Havia ainda…


O que o afastou? Dedicava-me a tentar resolver-lhe a situação profissional. Persegui com pedidos várias pessoas e quando consegui uma exposição com destaque e direito a vendas pelo preço justo, desapareceu. Fez cinco anos. Procuro-o, ainda. O seu talento foi reconhecido, porque o levei aos entendidos sem o levar deveras. Tivessem-no visto e jamais teriam credibilizado os meus rogos. Entendo-o, não sem revolta. A minha vida melhorou depois dele. Os meus sentimentos ficaram como as paredes alegres lá de casa e os olhos com que me abro para o mundo vêem melhor. Recordo um homem agreste, ressentido, mentiroso, que fedia e me ensinou a ver a beleza mesmo quando o quadro é negrume. Sinto saudades dele. Lamento nunca ter tido o desprendimento de lhe beijar os olhos desfocados.

- Que cheiro.

- ‘Bora. Estamos atrasados.

- Espera. Está aqui alguém.

- São sacos. Depois da hora não nos deixam entrar.

- Cala-te. Vê: Pés. Cabelo. Boa noite. O senhor está bem? Caiu?

- Deixa-o estar, pá. Deve estar com a narsa…

- Eh… Tantos quadros. Repara. Aqueles olhos… «À Isabel»…

- A peça começa daqui a cinco minutos. Vamos.

- Não será melhor chamarmos a polícia? Se está morto?

- Oh. Pancas, mas é. Olha.

- Ok, vamos mas não corras! Os saltos enfiam-se no passeio.

(Gargalhadas.)

Andreia Azevedo Moreira 28 de Abril de 2012

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