sábado, 27 de dezembro de 2008

 

"Ver" os outros

Em muitas das minhas manhãs rumo à prisão (perdão, rumo ao trabalho. Sim, felizmente que o tenho blá blá blá blá. Que Deus não me castigue pelo sacrilégio blá blá blá blá. Sim reconheço que não fotossintetizo e como tal necessito de um trabalho como as pessoas, blá blá blá blá) olho para os outros que me acompanham nos transportes públicos e tento imaginar-lhes as vidas.

Nota: os transportes públicos são fonte inesgotável de inspiração.

Há um senhor que me fascina. Desde a primeira vez que o vi que me prendeu o olhar nele, com o seu estranho modo de ser e sempre que o vejo ponho-me a magicar. Cheguei a escrever na agenda ao pormenor o seu aspecto para um dia poder "usá-lo" nas minhas histórias. Esse dia chegou numa aula do curso de escrita criativa que frequentei entre Setembro e Novembro (Aquela paixão de curso pá). Tínhamos de construir o perfil de uma personagem (físico, social e psicológico).

Saiu-me o que se segue.

(Ainda não desisti dele. Vou melhorá-lo, completá-lo, construir-lhe as companhias e o senhor do autocarro passará a ter existência paralela.)

“Storyline”: Caberá uma vida inteira em duas pesadas sacolas? Pode o peso de uma existência ser suportado diariamente? Afonso acha que sim. Afonso sabe que tem de ser assim. Quando a catástrofe que pressente (paranoicamente), há anos, acontecer, irrefutável, quer ter tudo aquilo de que necessita consigo, para poder começar de novo onde quer que seja. Todos os dias para si são importantes porque encerram uma busca da qual só desistirá se morto. A busca pela Inês que conheceu e perdeu antes que pudesse, quem sabe, arrepender-se. Apenas o prenúncio do amor. Não o amor em si, mas já o suficiente para que viva uma vida inteira em função dele. É pena que nas sacolas não caibam o seu amigo João Faz e a sua Tia Gertrudes. Não pode sequer imaginar o terror que sentirá, aquando da catástrofe, por não saber deles.

Nome: Afonso Trindade de Noronha
Filho de: Augusto Albergaria de Noronha e Maria Ana Trindade de Noronha 62 anos de idade

Características físicas:
Homem de estatura baixa (1,65m); muito magro; cabelo grisalho forte; ri-se sempre de boca fechada (uma meia-lua apenas) mas tem os dentes impecavelmente brancos e direitos; olhos quase negros; óculos demasiado grandes para a sua face, feitos de massa; barba sempre impecavelmente feita; nariz batatudo; tem um sinal por baixo do olho direito; moreno (mesmo no Inverno a pele tem um tom bonito, ligeiramente bronzeado); as orelhas são muito grandes mas não se vêem porque estão sempre tapadas pelo farto cabelo; mãos delicadas com os dedos muito longos, tem nas mãos regularmente eczema. Tenta minorar a possibilidade de infecção usando nos períodos em que o eczema ataca com mais força umas luvas sem dedos; os pés são enormes (calça 45); no braço esquerdo tem uma tatuagem com o par yin-yang; como come uma cabeça de alho todas as semanas, exala muitas vezes esse cheiro; não tem outro cheiro nos dias restantes; nunca teve uma doença grave (é 100% saudável) raramente se constipa (por causa do alho?); a sua voz é grave e muito bonita (poucas vezes fala); é muito discreto e quando se cruza pelas pessoas baixa o olhar fitando o chão, raramente as encara. Roupa que enverga é muito velha mas impecavelmente cuidada. Não se vê um buraco ou um remendo, contudo o seu ar é de pessoa sem recursos que vive no limiar da pobreza. Sapatos pretos velhos mas sem buracos; calças de fazenda que parecem dos anos 60; pullover, camisa e um blazer com reforço nos cotovelos, usa sempre uma boina preta. Ao ombro um saco muito pesado (o que é indicado pela curvatura do seu corpo enquanto anda) e na mão contrária a esse ombro, outro saco igualmente pesado que contrabalança a outra carga. São sacos grandes de pano muito resistente. Porte digno e aprumado apesar da antiguidade de tudo o que o compõe.

Socialmente: Nasceu em Lisboa, do cruzamento de duas árvores genealógicas de origens abastadas, teve infância muito feliz resultado do amor genuíno que unia os pais. Não fora um casamento combinado como usual à época e sim um encontro de duas almas. A partir do dia em que se viram pela primeira vez, jamais se voltaram a separar, mantendo no entanto a sua individualidade enquanto pessoas. Eram um casal saudável e feliz. Afonso cresceu sem preocupações. Quando a guerra nas antigas colónias portuguesas se tornou um destino traçado, fugiu. Desapareceu a todos (embora mantivesse sempre o contacto clandestino com a sua mãe) e esteve em Londres muitos anos, dos quais tem muitas histórias para contar. Nessa altura perdeu de vista uma mulher por quem se apaixonou perdidamente e de quem nunca mais soube o que quer que fosse. Anda desde 1975, altura em que regressou a Portugal à sua procura, seguindo-lhe o rasto em arquivos de jornais e organismos públicos que possuam dados sobre os cidadãos. Nunca exerceu uma profissão. A sua conta bancária permitiu-lhe sempre viver com o que pensa ser suficiente para que se viva “bem”. É um homem de poucos caprichos. Todos os meses retira até à quantia que julga ser razoável para um dia-a-dia remediado e reserva sempre uma parte para ir ajudando outras pessoas que veja em real precariedade. Vive num quarto em casa de uma tia idosa, na Avenida de Roma que o deixa servir-se das partes comuns da casa como se fosse seu filho. Limpa o quarto duas vezes por mês. Tem no quarto uma gaiola com dois canários que passa a vida aberta porque lhe faz muita confusão a privação de liberdade. Eles nunca fugiram. Na sua mesa-de-cabeceira a fotografia a sépia da mulher que o apaixona há uma vida. Inês Alexandre Belo. Todos os dias deixa o seu quarto em casa da tia e parte na sua busca por Inês. Todos os dias, apanha pontualmente o mesmo autocarro, deixando que toda a gente lhe passe à frente e sendo sempre o último a entrar. Às vezes corre para o apanhar. Às 9h05 todos os dias. Nunca votou. Nunca se interessou por política mas esteve sempre a par de tudo o que ia acontecendo até ao presente. Era forte a convicção que a guerra não era para si. É do Sporting. O pai sempre o levou aos jogos em pequeno, enquanto a mãe ficava em casa da Tia Gertrudes (com quem vive actualmente) a conversar e a tricotar camisolas que levavam depois a instituições de crianças carenciadas. Gosta de música clássica, principalmente em piano que também sabe tocar de forma exímia embora só o faça muito esporadicamente quando a tia sai. Todos os anos vai à ópera, uma única vez, no São Carlos, ocasião para a qual dispõe de um fato novo muito bonito que, todos os anos, se revela adequado. É esse o seu único luxo. O seu prato favorito é caldeirada de peixe. Não entra num restaurante desde que era muito novo e ia com os seus pais mas lembra-se bem do quanto gostava desse prato. A tia não o sabe fazer e ele também não cozinha. Faz o essencial para não morrer à fome. Come demasiadas vezes bolos e folhados e apesar disso uma saúde de ferro e uns dentes invejáveis. Tem um único amigo, João Faz, a quem confia a sua vida e com quem se encontra num dos bancos do Jardim da Estrela. Ele tem Alzheimer e já pouco fala mas ainda o reconhece. Ficam muitas vezes apenas sentados, lado a lado, num silêncio cúmplice. Acredita em Deus mas não na igreja, rezando todas as noites uma oração inventada por si. Solteiro. Nunca casou. Nunca se envolveu com ninguém à excepção das prostitutas a quem paga volta e meia para ter sexo e conversar sobre as mulheres. A Inês nunca chegou a ser sua. Já se masturbou a pensar nela. (Será que isto devia ir para o psicológico - pensar? Ou para o físico? – mãozinha) Estudou até à altura de ir para a faculdade mas nunca ingressou numa. Não lhe interessava. Não precisava também. É uma pessoa interessada que lê muito e senhor de uma vasta cultura a diferentes níveis. Algumas fontes: rádio que transporta num dos sacos que carrega, bibliotecas onde passa várias horas do seu dia devorando os livros que lhe despertam a curiosidade e os arquivos onde enceta a sua busca por Inês e onde aproveita para conhecer outros factos, tanto do passado, como do presente. Não gosta de ver televisão. Não bebe café. Não fuma. Nunca lhe negaram entrada onde quer que fosse, apesar do seu ar.

PSICOLOGICAMENTE:
Afonso é um homem paranóico. Convenceu-se que um dia uma catástrofe o há-de tentar apanhar desprevenido e privá-lo do que considera essencial para viver bem. Resolveu esse medo irracional, transportando todos os dias dois grandes sacos de pano que encerram tudo o que considera vital para começar de novo em qualquer lugar. Nunca a tia o conseguiu dissuadir de semelhante delírio. Nunca ninguém o conseguiu persuadir acerca do que quer que fosse que não estivesse disposto a aceitar. Obstinado fez sempre aquilo que o seu interior lhe ditou. Jamais permitiu interferências exteriores a si no que toca a decidir o seu rumo. Vive todos os dias com a sombra da catástrofe sobre a sua cabeça. Não sabe o que vai ser, mas acredita piamente estar completamente preparado. A única lacuna no seu plano (im)perfeito é não poder transportar consigo nas sacolas as duas pessoas que lhe são mais queridas, o João Faz e a tia Gertrudes. Quanto aos canários não se preocupa. Como lhes deixa a gaiola aberta e a janela com a abertura suficiente para que passem, se assim o desejarem, sabe que irão ter consigo no fatídico dia, ou pelo menos sabe que têm essa possibilidade de o fazer e por isso, por eles, não se atormenta. Gosta muito de ler, aliás é nesses momentos que se sente preenchido, nesses e nos momentos em que procura a Inês. É um saudosista, vive a vida alimentando-se de recordações, algumas das quais mais fruto da sua imaginação romântica do que fruto de uma experiência vivida. De temperamento calmo, nunca discutiu com quem quer que fosse e não suporta quando as vozes se elevam, nem a intolerância das outras pessoas por isso isola-se muito. Não se lembra da última gargalhada. Não se lembra da última vez que chorou com desespero. Tem vivido assim com uma meia-lua no rosto (um estado intermédio e morno) que o demonstra benigno aos outros, aos que conseguem dar por ele. A sua cor favorita é o laranja porque lhe lembra as flores (gereberas) que ofereceu a Inês a última vez que a viu. É um homem de fé. Para ele nunca é tarde. Tem no saco um bloco onde escreve intermináveis listas de tudo o que ainda lhe falta fazer. Não passa por um sem-abrigo ou por uma pessoa que pressinta em dificuldade sem se lhe dirigir. Nesses momentos fala com a sua voz quente e reconforta as pessoas. É também incapaz de virar costas a um animal em sofrimento (um pássaro caído do ninho, um cão ferido, um gato com fome) auxilia-os na medida das suas possibilidades. É uma pessoa afável e carinhosa mas poucas são as pessoas que o conseguem testemunhar dada a sua pacatez. É um homem de uma inteligência intuitiva, não daquelas inteligências de raciocínio rápido em cálculo e em lógica, é antes uma inteligência para as pessoas e para aquilo que lhes faz mais falta (emocionalmente falando). Desprovido de ganância não dá muito valor ao dinheiro que se encontra na sua conta recheada no banco. Acredita ser possível ser-se feliz só com a contemplação da beleza das coisas que são naturais, como um pôr-do-sol, o mar revolto em dias cinzentos, uma planície completamente seca e árida no Verão, as cores de um pássaro desconhecido ou o pêlo macio de um gato. Acredita que verá novamente Inês. Acredita que o seu amigo se curará um dia da doença funesta. Acredita que ainda tem muito tempo para fazer muita coisa. Sente um terror real quando pensa na “catástrofe” e nessas alturas verifica de forma doentia os conteúdos dos sacos. É metódico, rigoroso e honesto. Nunca enganou quem quer que fosse. Tem medo de trovoadas porque acha que são os anúncios da dita catástrofe. Sente inveja dos que amam. Sente ciúme pela vida que a Inês provavelmente terá. Sente mágoa pelo exílio. Apesar de toda a vida ter vivido errante e sem grandes companhias nunca se sentiu só.

Este exercício foi, para mim, um dos mais importantes. Um dos que mais me ensinou. É preciso criar as personagens para lhes escrevermos a história. É o cimento da construção que pretendemos erigir. Sem essas a história é vã.

Outro ensinamento precioso: "Não te contentes com a primeira versão (calona!)."

Quem dera ter um clone que pudesse enviar lá para o outro sítio onde ganho o dinheirinho para eu (a verdadeira) poder ser EU (a verdadeira).

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