quinta-feira, 8 de outubro de 2009

 

#1 Não era cego mas tinha um cão guia.


Ele era um tipo normal. Mediano em tudo. Sabia disso e a sua auto-estima não lucrava com semelhante lucidez. Não é que se depreciasse. Não. Gostava de si, apesar da banalidade. Ela também gostava dele. Passava todas as manhãs à frente da sua casa antes de ir correr para a marginal e às vezes sorria-lhe, depois de dar uma festa no cão – o Pescas. Luís chamara Pescas ao cão porque o resgatara na margem de um rio, num dia de pescaria. O cachorro estava prestes a afogar-se quando ele o salvou do fatídico destino que alguém lhe traçara. Sofia há muito que se encantara pela figura deste homem solitário, mas ainda gostava mais do cão. O único entre os dois que lhe devotava alguma atenção. De cada vez que se encontravam o bicho ficava frenético. Abanava-se enlouquecido de alegria e corria em círculos à volta de Sofia. Só não se empoleirava na transeunte porque as três semanas de aulas de etiqueta canina o haviam treinado a coibir-se desses impulsos. Luís alheio à felicidade do seu canídeo resmungava um bom dia sem se dignar a encará-la. Ela já não ligava, as manifestações amorosas do Pescas eram o bastante. Pode dizer-se até que começavam a sobrepor-se a qualquer vontade que já tivesse tido de conversar um pouco mais com Luís. Cansava-a aquela completa falta de interesse do companheiro de Pescas... “Quem não dá uma oportunidade é porque também não a merece.” Vaticinava para se consolar. É de notar que Sofia sabia o nome do cão, mas desconhecia o nome do taciturno rapaz. E os dias sucediam-se. Dias iguais para um e para o outro. Talvez Sofia fosse menos amargurada, se é que se podem medir as amarguras das pessoas.

Luís não se envolvia. Sonhava com uma mulher, sua colega. Uma pessoa que não lhe retribuía o sentimento mas que o usava por diversão. Ele sabia o que ela fazia dele, permitindo-o. Enredado numa paixão avassaladora.

Sofia vivia simplesmente. Não era dada a grandes reflexões. Vivia, era tudo. Gostava de correr na marginal, do Pescas, do pão quente pela manhã, que comia com doce de tomate feito pela avó de noventa e nove anos, ainda viva e sã, e gostava muito de respirar fundo enquanto olhava o céu e esticava os braços, como quem quer abraçar as nuvens. Tinha algumas amizades, gostava do seu trabalho, sentia-se bem consigo.

Luís só tinha aquela paixão. Era nisso que acreditava. Que só tinha aquela paixão. Que fazer da vida quando a paixão se consumisse? Sentia-se profundamente só. Ironicamente era o cão que o impedia de se matar. Salvara o Pescas e actualmente era o Pescas que o salvava. A vida a escrever-se escorreita. Qual acaso? Não existem acasos.

À noite, em casa, dançava amiúde a dança da solidão, que é como quem diz masturbava-se, enquanto pensava na outra.

De dia, na rua, ignorava Sofia.

Sofia ia-lhe estudando o modo de ser.

Começou pelo visível: os olhos tristes mas expressivos; a boca contida; o sorriso tímido com alguma notícia lida no jornal do dia – todos os dias comprado. - o cabelo revolto, encaracolando junto ao pescoço; os ombros caídos; as mãos de unhas roídas; a roupa escura. O andar desajeitado; a voz apagada; o apelo meigo ao cão. O sorriso nervoso com algum atropelo do Pescas. O ar de abandono. A lentidão nos gestos. A desistência tácita. A desmesurada calma. A derrota. Vontade de o consolar. De o amar, até.

Queria dizer-lhe que ele estava enganado com a vida e não sabia como. Pois se tão pouco a olhara algum dia.

E o ritual do cão repetia-se.
E a cegueira de Luís subsistia.

Sofia ria-se muito e perdoava a indelicadeza ao rapaz.

Andreia Azevedo Moreira
8 de Outubro de 2009

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Comments:
muito bom!
tás cada vez melhor caraças!
adorei a "dança da solidão"...sublime...genial! (e olha sou daquelas que mete nojo e usa (e abusa) pontos de exclamação!!!) :)

ai que anda aí alguem a magicar umas coisas anda :)

beijos
 
Não te faz lembrar: "dancing with myself oh oh dancing with myself..." eh eh eh

Lembrei-me da dança da solidão aí com 19/20/21 (já não sei bem) quando fiz uma "ode" (não era ode com certeza) a essa bela prática da masturbação e que por recato me coibo de partilhar com vocemecêses.

:)

BJS AMIGA!

Até LOGO WEEEEEEEEEEEEE!
 
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