quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

 

Pensar «sem maneiras» não é o mesmo que ficar «sem maneiras». Ou talvez seja.

À Ana A., Ao João P., ao Pedro M., e, já agora, a mim_zinha (Santinho).

De como um almoço por demais agradável (…apesar de certas e determinadas correntes de pensamento se me terem afigurado algo redutoras e inconscientemente (?) machistas. Terei, pois, de estudar de forma mais aprofundada o assunto para poder, caso a oportunidade se me apresente, voltar à carga com mais propriedade e menos intuição e não fazer, por conseguinte, figura de parva…) deu nisto:

"SEM MANEIRAS"

Nenhum dos quatro entendia o que estaria ali a fazer.

Disseram-lhes: sentem-se.

(Sentaram-se.)

Havia pessoas, ao redor, a conversar há minutos como se, se conhecessem de décadas de convívio e somente aqueles quatro estranhos se estranhassem.

O facto de não fazerem ideia quem eram aqueles com quem iriam almoçar não os impediu de sorrirem.

Que fazer quando somos constrangimento?

Sorrir. Desviar as atenções da ignorância perante o outro, ou do que (nos) espera e, também, daquilo que se quer mostrar, ou que permaneça oculto pelo maior período de tempo possível.

Sorrir toda a estupidez.

Sorrir. Imaginar os outros nus, ou a cagar, para os trazer para perto da própria humanidade.

Por baixo da roupa todos carne, mais ou menos gordura, pele, imperfeições, pilosidades, sinais, tez clara ou escura, odor(es).

Os trajes escondem nus que se assemelham mesmo quando diferem, como as almas aprisionadas nos crânios e nas costelas.

Sorriam, pois, os quatro ignorantes que mais não eram que corpos nus envergonhados da necessidade, ou do horror, que os fazem, de igual modo, evacuar. Sem contenção. Humilhando.

As perninhas debaixo da mesa abanavam. As mãos tremiam, enquanto os pulsos se confrontavam com a mesa para que não fosse tão evidente o nervosismo. As vozes em falsete, não destoando porque nenhum sabia a que soavam as vozes verdadeiras.

«Vim aqui ter de carro ou de comboio?»
«Vi-te chegar no 758.»
«Ouviste-me o pensamento?»
«Não. Nada te disse. O que ouviste? Vim de metro. Entrei no Campo Grande e saí no Cais do Sodré. Subi a Rua do Alecrim a pé.»
«E eles?»
«Sei lá. Não os conheço. Nem te estou a responder. Tentas apenas ganhar tempo. Desconheces o que dizer de relevante, não é?»
«É um facto. Para que nos sentaram aqui?»
«Às vezes é benéfico não conhecermos os outros, tal como não nos conhecemos deveras.»
«Sei quem sou. Não me envolvas nas tuas crises.»
«Crises? Esqueces-te que não me conheces? Tão pouco te respondo. Tentas somente ganhar tempo...»
«Pois.»

Tímidos sorrisos geram risos que adivinham gargalhadas e o desassossego esbate-se. Não se treme quando se ri daquela maneira. A seriedade impõe o temor. A imbecilidade permite que a coragem, ainda que ignara, se revele.

Quem dos quatro falará primeiro? Nenhum? Todos um coro?

(De questões. Insegurança. Solidão.)

Querem compor-se, parecer bonitos, receiam não agradar. Olvidam o pormenor subtil, todavia, óbvio: todos com medo.

Não existem os destemidos. Os que mais arriscam são, talvez, os que mais t(r)emem. Não permitem, contudo, que os agrilhoem. Batem os braços com força e ânimo desmedidos, acreditam poder voar e respiram. Gritam. Revoltam-se. Berram às pessoazinhas que regozijam no amolgar ao apelidá-los de «LOUCOS» que se fodam e persistem num frenesim de asas que os eleva em voo que se não pode medir numa distância dos pés ao chão. Voam tão alto que os pequeninos da existência jamais os alcançam embora os insultem como se lhes pudessem chegar.

Eis que os quatro, cada um a seu modo, eram dos que voam. Assim, não tardou até que se desenleassem do embaraço para poderem dizer coisas uns aos outros. Os quatro, sem excepção, queriam dizer algo e o que não fosse dito nas palavras que embatiam na língua e nos dentes, sê-lo-ia com olhos, trejeitos, meneares de torsos e dedos a sugerir direcções.

As horas sucederam-se e eles esquecidos dos que se conheciam a ocupar a mesma sala e não passavam então de paredes caiadas. Mudas. Já não os incomodava a familiaridade aparente de outrora, dado que haviam cessado de existir. Rodeados de paredes desinteressantes encontravam-se defronte a autêntico banquete. Bálsamo para as papilas gustativas e poderoso inflamador dos sentidos. Escorreu-lhes o dito nas gargantas com as horas de conversa.

Vénus ajeitava o cabelo curto na testa calando muitas interrogações. O tempo não era suficiente para aferir as díspares vontades que como aranhas lhe teciam teias nos pulmões. Volta e meia faltava-lhe o ar e ela sentava-se muito direita, procurando que o oxigénio persistisse em fazê-la viver. Ameaçava dizer o que a incomodava – Uma espécie de torpor. – inclinando-se para Mercúrio, para logo se recostar na cadeira, ingerindo mais puré. Este era a cola que lhe unia os maxilares impossibilitando-lhe qualquer articulação.

Mercúrio atento impedia que o silêncio se (re)instalasse entre os dois. Falava-lhe sobre as coisas importantes enquanto a descansava com os olhos: «SOU COMO TU.»
Nessas alturas o puré não descia e ela fitava-o muito séria incapaz de sorrir o seu sorriso bonito.

Terra e Saturno, pelo contrário, eram loquacidade cúmplice e diziam além das coisas importantes, aquelas que são só volumes com que se colmatam os vazios.
Amiúde Terra repreendia Vénus sem que os restantes notassem.

«Engole o puré. Que fazes?»

«Cala-te. Que pretendes?» - A cabeça pendendo para a direita, as sobrancelhas um acento circunflexo.

«Desculpa. Custa-me ver-te calar. Perder tempo com puré.»

«É comigo. Que sabes de mim e do que me apetece comer?»

«Nada. Nem te conheço. Tens razão. Mastiga o puré. Faz o que te der na gana.»

Vénus abriu a boca a Terra e puré nenhum.

Terra sabia que a partir desse momento Vénus iria em sentido que lhe agradava. Não a conhecia mas vê-la confiante era(-lhe) crucial.

Vénus e Mercúrio denotavam tensão. Este destruíra em incontáveis fios a fita de tecido vermelha que servira para fazer do guardanapo um canudo. Horas antes mirara-a com o mesmo como se empunhasse um telescópio. O pescoço parcialmente revelado pelo cabelo escorrido, muito abaixo dos ombros, obcecava-o de forma indisfarçável. Com a brincadeira procurava dissipar o ímpeto que o acometia de lho conhecer. Com o rosto? Descendo-lhe suavemente até à clavícula enquanto o marcava com a barba hirsuta. Com o nariz? Inspirando-lhe o aroma adocicado. Com os lábios humedecidos? Deixando-lhe rasto de saliva.

Decidira render-se à cobardia. Ir ao cinema. Comunicou-o.

- Tenho de partir. Apetece-me um filme. Com sorte chego a tempo da sessão das 18h. É longo, como seria muito duradoura a tarde se me dispusesse a conhecer-vos melhor. Não necessito de mais três pessoas na minha vida e é por isso que vou a esta sessão. Passem bem, sim?

Terra encolheu os ombros. Tinha desabafado algumas inquietações com quem de direito. Sentia-se bem. Retorquiu:

- Considero, igualmente, já conhecer o número de pessoas exacto que consigo suportar.

Saturno encarou-os ofendido.

- Folgo em sabê-los tão cheios de pessoas. Para que vieram se estão sem espaço?
Vénus desconcertada balbuciou como se a questão se lhe dirigisse.

(Não era o caso. Faltavam-lhe pessoas. Uma, pelo menos.)

- Não gosto assim tanto de puré. Gostei de vocês. A argamassa impediu-me, até aqui, de o dizer.

Foi assim, ainda com fios de carne entre os incisivos, passadas horas em que se esqueceram dos disfarces, que recordaram o pudor que sentiam por se resumirem a corpos nus e almas fechadas.

Calaram-se. Instalou-se insidiosa a artificialidade e com essa a ausência de assunto. Saturno virou-lhes as costas irritado por ser o único a não temer a exposição e dirigiu-se às paredes, já não mudas, nem brancas, antes vozes e caras que eram “adeusinhos” e sorriam dentes de circunstância que diziam:

«Nunca mais te vou ver e não me importo.»

Após hercúleo esforço, os outros três, haviam sucumbido às leis dos demais. Era inconcebível para ele que o tivessem feito. Suava descontentamento. Reuniram-se uma última vez em torno da mesa, fitando-se, medindo-se irremediavelmente expectantes, nesse momento em que nada deveriam aguardar dado que era o fim do que não principiara. Saturno sustinha o desprezo que agora lhe inspiravam os companheiros do repasto. Terra perdera-se nas considerações que tecia por dentro das meninges, constatando que ficara muito por dizer, embora não fosse importante já que dentro de minutos tudo como dantes; Vénus percorria com a língua o interior da boca, recriminando-se por todo o puré que ingerira ao longo dos anos, enquanto Mercúrio lhe fixava o pescoço num ardor sem precedente. A buzina do táxi arrancou-o à pele daquela mulher.

- ADEUS.

Despediram-se em amplexos demorados nos quais aferiram a real nudez.

(Corpos que vibram não se podem ocultar.)

Vénus mirou-se na superfície da colher de sobremesa lambida, certificando-se que nenhum puré persistira nos dentes e correu atrás de Mercúrio impondo-se no mesmo táxi.

Era uma viatura exígua e dois o número certo de pessoas que comportava.

(Quatro se dois pares, lado-a-lado, se emparelhassem como Vénus que se sentou em Mercúrio antes mesmo de lhe explicar que necessitava de uma boleia para nenhures.)

Deu-lhe para rezar. Encarou o tejadilho da viatura enquanto ela lhe desapertava as calças e entrelaçava o pescoço no dele. Os abdómenes confrontavam-se ríspidos. Não ousava descolar as mãos do assento, apesar das mamas adivinhadas do tamanho exacto das palmas da sua premência. Era marcado a cheiros, saliva e possessão.

No retrovisor não havia rosto para o motorista e os ombros desprovidos de olhos não os incomodavam, apesar de pejados de ouvidos.

Foi por tempo indeterminado que Vénus comandou e Mercúrio foi subjugado. Demonstrado ficou que um desmedido silêncio pode não significar quietude, antes o momento que antecede inexorável predação.

O pavor da nudez ficara-lhe no restaurante, no braço flectido de Terra que lho segurara com ternura, como ao casaco de uma criança. Como se fossem, até, amigas.
Proferiu enfim, assertiva:

- Convida-me para ir contigo ao cinema.
- Vem comigo ao cinema. A película desenrola-se por mais de quatro horas. Aguentarás tanto tempo a meu lado?
- Não gosto dessa palavra.
- Qual?
- Aguentar.
- Olha para mim. O que vês? Não vislumbras quão patético sou?

Vénus percorre-lhe os lábios com a língua, de seguida os dentes, o céu da boca. Envolve-lhe a língua com a sua. Certifica-se que também nele puré nenhum.

Narizes encostados. Quatro eram dois olhos imensos de coruja.

«SOU COMO TU.»

Andreia Azevedo Moreira (13/11/2010 pelas 14h45 – 24/11/2010 pelas 07h30)


Títulos alternativos (Vocês decidem):

1) "Puré de batata com apontamento de casca de laranja braseada"

2) "Cascas de batata fritas com maionaise a acompanhar a 4,5€ são um absurdo."


3)"Atenção que o puré de batata congelado do Pingo Doce é muito bom e parece mesmo caseiro."




P.S. Ei-lo Tânia. Espero que (também) gostes. ;)

P.S. 2 Peço perdão pelas ideias repetidas à exaustão. Falta revisão mais apurada, porém, tive receio que o tempo se me esgotasse sem conseguir publicá-lo e vá-se lá saber porquê determinei que era importante fazê-lo antes que me rebentassem a bolha.

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