terça-feira, 29 de dezembro de 2009

 

Exercícios na TRAMA (02/12/2009) continuação

MOTE: Tivemos o privilégio de visitar a casa de um arquitecto, amigo da Stôra, cuja sala nos serviu de inspiração para a descrição do local onde nos encontramos raptados. O arquitecto serviu de modelo de raptor. Teríamos de criar, pelo menos, uma cena de interacção entre nós. O resto ficou por nossa conta. Aí foi alho...

Segunda Parte

Não tenho noção das horas. Sempre fui despassarada, como me encontro de venda e em andamento, é irremediável que me sinta totalmente perdida. Seguimos a esta velocidade temerária há horas, julgo, e não há meio de chegarmos a lado algum. Não suporto esta angústia. Que alguma coisa suceda, para que possa entender o que se passa, rapidamente, ou morro de síncope cardíaca, não tarda. Paramos. Circunda-nos um silêncio opressor. É bem-feito para não ser ansiosa. Eis-me pior agora que antes, quando em movimento. O medo apodera-se de mim.

- Vamos. – Diz-me o da íris sinalizada, enquanto me puxa pelo braço, bruscamente, para fora da viatura. Sei ser esse, porque a sua voz na ocasião em que me agarrou se me tornou inesquecível. Uma voz cavernosa e penetrante. Retira-me a mordaça.
- Onde? Posso saber? – Armando-me em esperta com o intuito de disfarçar o nervosismo em crescendo.
- Calada. À minha frente. – O seu bafo quente na minha nuca provoca-me um arrepio que me percorre, desagradavelmente, as entranhas. Uma porta abriu-se antes da minha e só essa se fechou, pelo que deduzo que apenas o das órbitas azuis me acompanhará.

Começa a empurrar-me. Vou tropeçando e quase caio algumas vezes. Pela irregularidade do terreno e total ausência de ruído, interrompida de quando em vez com o cantar dos grilos, calculo estar longe da cidade.

Estacamos subitamente. Ouço sete pancadas secas numa porta que adivinho ser de madeira. Abre-se vagarosamente à minha frente. Range.

- Entra.
- Sozinha? Quem me espera ali? Onde me deixam?
- Cala-te. Entra.
- Não vejo. Tire-me a venda por favor. – Enfim submissa.
- Entra, já disse!

Palpo a parede à minha direita. O raptor ordenou-me que uma vez no interior, seguisse sempre encostada a essa. Ouço um mecanismo que ora avança ora se detém. Nesses hiatos, um apito sonoro. Três toques e prossegue. Avanço pelo corredor cautelosamente. Tropeço num degrau e logo depois esbarro numa qualquer peça de mobiliário.

- Continua. – Ouço, agora, uma voz diferente.

Estar cega, sem o ser deveras, é aterrador. Prossigo e detecto degraus. São demasiadamente curtos, pelo que opto por subir de dois em dois. Estão revestidos por um tipo de material que abafa os passos. A pessoa que me aguarda terá, por certo, um bom ouvido, ou é demasiado impaciente, pois de cada vez que paro me incita imediata e rispidamente a continuar. Subi dois lances de escadas. Em cada um desses havia uma porta que me parecia de madeira em quadriculado à qual me agarrava procurando uma saída.

- Não é aí. Avança. – Diz-me a voz.

Eis que atinjo o topo. Pressinto alguém muito perto e ouço uma chave rodar. Cinco voltas numa pesada fechadura, manuseada com dificuldade. Um ligeiro safanão precipita-me para o interior. Sou orientada até um ponto em que uma pressão no ombro me faz sentar. O carcereiro retira-me a venda.

- Mas você é...
- Sou.
- Como? Está com cem anos ou mais?
- Quem faz as perguntas sou eu. Porque é que foste comprar o livro, precisamente hoje? Porquê? – Está a falar-me tão perto que a saliva com que me salpica, ainda está quente ao atingir-me a face. Porém, a sua voz não se eleva.
- Apeteceu-me. Palavra. Lembrei-me dele e fui comprá-lo. Uma coincidência dos diabos.
- Não me faças rir. Não sou para brincadeiras. Ouves? Diz-me a verdade. Exijo-to.
- É o que digo! Tive vontade. Recordei a primeira vez que este livro se me revelou e decidi adquiri-lo. Não tinha um exemplar em casa. Foi isto.
- Não acredito. Pensa bem no que fazes. Já te disseram que há uma vida em jogo?
- Que vida? O que fiz? Diga-me? Sou inocente, ouve?! Seja lá o que for de que me acusa. Tenho dito. – Recupero alguma da insolência que me caracteriza e deito-lhe a língua de fora, qual menina traquinas. Ele ensaia uma bofetada, contudo suspende o gesto mesmo junto à minha cara apertando-a com a mão direita, fazendo-me sentir humilhada e impotente com a fisionomia deformada entre as suas manápulas.

- Fica aí um bocadinho a pensar no que queres fazer à tua vida, que eu já venho. Fá-lo com cuidado pequena, que a minha paciência está a esgotar-se. Aguentarias a culpa?
- Sou inocente! – Grito-lhe uma vez mais.

O Senhor Almada. Quem diria? Ainda mais velho, embora semelhante ao que tinha guardado na memória: barba grisalha, bem aparada, corpo roliço, bengala na mão esquerda e aqueles dois grandes sinais escuros por baixo dos olhos. Marcas de uma pele de provecta idade. O cachecol vermelho, acessório do qual jamais se separava e que mantém, enrolado no pescoço da esquerda para a direita. Dois grandes anéis no anelar e no mindinho rematam a aparição. “Velhos hábitos morrem dificilmente.” Como se ouve nos filmes. Este senhor manteve-se fiel ao estilo que criou para si. Gosto disso. O que não aprecio é o modo como me trata. Conheci-o há uns anos, mas a relação que estabelecemos não justifica as cobranças que me faz. São descabidas. Absolutamente desconcertantes.

Consigo vê-lo daqui. Retirou-se para trás de um biombo que o oculta parcialmente. Percebo que se sentou ao que me parece ser uma secretária. Pela luz que lhe ilumina o rosto e pelo dedilhar, depreendo que se encontre ao computador. Resta-me estudar esta sumptuosa divisão. A profusão de objectos, achados arqueológicos de diferentes civilizações, mobiliário e obras de arte, que me rodeia é intimidatória. Nestas alturas amaldiçoo a ignorância com que me tenho vestido ao longo da vida. Aqui estou, decerto numa câmara de tesouros, sem a conseguir avaliar com precisão. Apenas posso intuir o seu valor. Um quadro majestoso chama-me a atenção. Ocupa metade de uma das paredes. Trata-se de uma ilustração de uma queda de água de grandes proporções, à frente da qual um homem, insignificante perante a força com que a natureza se lhe apresenta, monta um cavalo e empunha uma espécie de lança. Penso: um indígena despido, num remoto lugar do planeta. É como me sinto, qual homenzinho nu, empunhando uma azagaia quebradiça e ridícula, quando comparada à força indomável das águas numa catarata. Ao lado, uma estante que se ergue até ao tecto contém dezenas de livros, todos do mesmo tamanho, com a mesma cor e de lombada igual. Sei que devia procurar as respostas que ele me intimou a dar, mas desconheço-as e esta sala é apaixonante demais para não me dedicar a observá-la.

Três cores me invadem os sentidos: o vermelho, o azul e o verde água. Uma quarta cor neutra, consiste na luz emitida pelos candeeiros de formatos variados que se encontram dispersos pela assoalhada, alumiando, o que, sem esses, seria um local deveras obscuro. Não fosse este o meu cativeiro e considerá-la-ia encantadoramente acolhedora. Sala digna de um lar de família. Sê-lo-á por ventura. As molduras proliferam como cogumelos em todas as superfícies: em cima de arcas de madeira, nas diferentes mesas, em cómodas. Revelam ternura; momentos de partilha; conquistas. O vermelho em excesso, pelo contrário, faz-me pensar no inferno. O meu. Até os estores são rubros. Fechou-os para me impedir de ver o que há para lá das duas janelas que tenho à frente. Ao meu lado esquerdo está um santo que fica à altura da minha cabeça, e à direita uma cruz de ferro. Fé agora? Não consigo. Com a cagufa, até me esqueci das orações que tão diligentemente costumo murmurar, todas as noites, antes me deitar. Ui. Aí vem ele...

- Então? Como estamos de memória?
- Continuo sem saber o que fiz para merecer isto.
- Não te faças de vítima! Comigo, essa ladainha não pega. Diz-me o que quero ouvir, sem demora!

Exalta-se de tal maneira que se engasga e começa a tossir continuamente. Dada a velhice, senta-se num cadeirão de pele com rodinhas, que se encontra no lado oposto ao da minha localização, para recuperar o fôlego. Limpa com um lenço verde de pano, retirado do bolso, o suor que lhe invadira a fronte. Fecha os olhos combalido. Para minha surpresa a sua respiração torna-se mais pesada até se transformar num ronco. Dorme. A esperança que este acontecimento inesperado me suscita, injecta-me o ânimo que me faltava para procurar uma saída de emergência. Busco ao meu redor uma forma de me soltar.


(Ah pois é: to be continued...)

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