terça-feira, 5 de julho de 2011

 

HIPERGRAFIA

Que é do meu silêncio? Do tempo. Do estar só. Que é de mim? Impõe-se-me esta reedição. (Como é que já sabia, nada sabendo? Ainda.) Falta-me o fôlego, a calma, a vontade. Que é da minha escreleitura? Que fazer se dia a dia afogo essa que também sou. Calo(-me) o grito. Adio. "Morte não te antecipes." Gostaria também de conseguir não ser, como li numa (auto)entrevista da Patrícia Reis, no sofá da LER, uma mulher demasiado cansada. Mas sou. Extenuada para me sentir capaz de pensar, quanto mais criar. Incapaz, todavia, de aliviar este aperto constante na alma que se enche por um lado de um Amor desmedido e se esvazia por outro de Amor não menor, tão-só diferente. Pelo amor primeiro sacrifico(-me) o outro. Imponho-me uma espécie de morte, para que outrem mantenha pelo máximo período de tempo possível aquele olhar puro, tão cheio de esperança e de encanto pelo mundo que lhe é, por ora, todo novo.

Eis o tempo em que tinha tempo:

- Alice, vem deitar-te. - Era a quarta vez que Frederik a chamava e o tom, outrora paciente, fora substituído por um que denotava já alguma irritação com a atitude da mulher.

Alice Farlow vomitava as entranhas. Quatro e meia da madrugada e premia, ainda, freneticamente as teclas do computador, convicta que em seguida se sentiria aliviada.

- Já vou querido. Está quase. Uma palavra mais e termino.
- Uma palavra... - bufou Frederik. Enterrou-se nos lençóis, preparando-se para dormir. Desde que a mulher engravidara pouco mais havia a fazer a seu lado, na cama, do que dormir. Cansara-se da procura frustrada. Sabia que era apenas uma fase e de momento, apesar de subtil, Alice era implacável na recusa.

Alice escrevera a palavra "Vazio" e regressara à cama como era hábito, pouco tempo antes do despertador tocar.

Frederik acusava já a respiração pesada quando ela, antes de se deitar a seu lado, o beijou ternamente colocando-se, em seguida, de barriga para cima, com as mãos sobrepostas em cima do peito.

Sentia-se inquieta afinal. Não lhe fora benigna a escrita, como esperava. Continuava como em todos os restantes momentos da sua vida: aflita.

Não admitia ser doente aos outros. - E nesse grupo "os outros", exterior e independente de si, incluía o marido. – Porém, sabia sê-lo. Contribuíra para o seu autodiagnóstico a formação em medicina, que não a deixava iludir-se. Padecia de hipergrafia. Desconhecia, no entanto, que tudo o que escrevia era desprovido de significado e que, de facto, era totalmente vão o seu esforço, pois ideia alguma era transmitida nessa catarse.

Dessa ignorância alimentava o seu desassossego, crente que o resultado seria nada menos que a frase perfeita. Aquela que, embora não sendo bela, seria, no mínimo, reveladora.

Fitava o escuro, por cima de si e à sua volta, os pensamentos sucedendo-se ininterruptamente:

É isto a vida sem palavras: Escuridão.

Amo Frederik, mas se não lho pudesse dizer... Se não lhe pudesse sussurrar "AMO-TE" enquanto lhe lambo o lóbulo da orelha antes de fodermos, seria como se não o amasse de todo. (Pobres dos mudos.) Foi para isso que deram ao Homem a capacidade de falar. Que os bichos se amem sem proferir palavra? Aceito. Mas é para mim, enquanto fêmea desta espécie, inconcebível fazê-lo.
Frederik olhar-me-ia indignado, com repulsa até, se suspeitasse que quando faço amor com ele, estou simplesmente a foder. Foder. Eis uma palavra com força. Nela se encerra toda a pujança do acto. Se disser "fazer amor" diluo por duas palavras o que, para mim, é uma só, repleta de solidez: foder. Não a considero vulgar, nem tão pouco indecorosa. Simplesmente intensa. Mas talvez Frederik não me possa entender e por isso, por ele, lhe digo, quando digo, "faz amor comigo".
Com as putas, que ele procura amiúde, e das quais julga que desconheço a existência, esperaria tudo menos um: "Faz amor comigo." Comigo só espera isso. Como é doce e ingénuo este meu homem.
Pois se somos animais - E simula escrever com o dedo esquerdo no ar "animais", fechando os olhos com força, como numa prece, para memorizar a palavra que daí a umas horas anotará onde calhar. São essas preocupações que a impedem de dormir a maior parte das noites. Palavras desgarradas que não pode, de forma alguma, esquecer ou deixar de registar, assim que lhe seja possível. Habituou-se à insónia, embora tema estar a prejudicar os seus fetos. - e apenas nos afastamos da irracionalidade porque existem as palavras e com essas criámos uma linguagem nossa. É no momento em que essa espécie de luta, corpo a corpo, se dá, que as palavras e a racionalidade são olvidadas e somos somente duas criaturas movidas pelo instinto. Nesses momentos, só há carne, sangue, violência, dor e prazer. E nisso, todos somos semelhantes. Julga-me melhor que as putas que compra, o meu bom Frederik. Julga-me impoluta e branda. E eu como ele, como elas, naquele momento, apenas um sedento animal. -Desenha "sedento" na barriga. - Sedento. Juntar sedento a animais. Acrescentar a palavra putas e a essas, ingenuidade. Será que me vou esquecer? Não me posso esquecer: animais, sedento, putas, ingenuidade, Frederik, Alice, escuridão, palavras, foder. Talvez fosse melhor levantar-me. Saio daqui sem o acordar, escrevo num instante estas preciosidades e volto. Durmo ainda algumas horas. Duas talvez. Horas. Acrescentar horas! Nada disto é importante, se numa palavra havia dito tudo. Preciso dormir.
Alice contorcia-se de ânsia, o estômago transido pela náusea que a angústia lhe agrilhoara à garganta. Levantar-se-ia mais uma vez nessa noite, com cuidado desmedido para não acordar o companheiro e escreveria, enquanto o suor da urgência pingava sobre a mesa da cozinha, as tiranas palavras.

Estando grávida de gémeos a psicose piorara assustadoramente. Já não se tratava apenas de noites em branco em frente ao computador. Escrevia em todo o lado. No pacote de açúcar, depois de o esvaziar no galão; no interior da sua bata branca de médica, totalmente escrevinhado; o papel higiénico enquanto sentada na sanita, repleto de palavras. Chegara a dar-se o caso de, não tendo quantidade de papel suficiente para escrever e se limpar, ter optado por escrever, desdenhando as consequências de semelhante opção.

Toda a sua roupa tinha bolsos e nesses havia sempre, pelo menos, duas esferográficas. Admitia a falha de tudo o resto, menos do veículo do seu génio. Inconcebível, não apontar os pensamentos brilhantes e profundíssimos que cria ter formulado, aquando da escrita dos vocábulos.

Frederik andava há anos a alertá-la que tudo o que fazia era escrever palavras incoerentes. Que nada daquilo prestava. Que era insano o seu comportamento. Fazia-o de forma quase cruel para que ela o ouvisse. Procurava poupá-la ao sofrimento de o ouvir por outrem. Alguém que não a quisesse tanto quanto ele.

- Canaliza essa energia desregrada para outros fins Alice! Procura outra ocupação que te realize e onde possas ser efectivamente boa. - Agora que ela ia ser mãe estava certo que o faria com rigor e exemplarmente. Seria uma excelente mãe, para os seus filhos, disso não lhe restavam dúvidas. Tentava então mostrar-lhe o que via com nitidez. - Porque não te dedicas ao quarto dos bebés? Ainda não te vi fazer nada em prol da sua vinda. Arranja o quarto, decora-o como quiseres. Compra roupinhas para eles. Sê como as outras mulheres Alice. Sê como as outras! Não compliques. E se quiseres, meu amor, conta-me as tuas ideias e eu escrevo por ti e para ti, aquilo que quiseste dizer todo este tempo e não foste capaz. Nunca passarás de uma escritora deploravelmente medíocre, e é para teu bem que to digo.

Alice* arrogante e agressiva fazia pouco dele, nessas alturas. Em tom jocoso humilhava-o com palavras geladas dizendo-lhe que o que separava o êxito dele, da ausência do dela, era um órgão reprodutor, destinado à queda, ao fracasso.

Não tinha, efectivamente, consciência da sua inépcia para o ofício que acreditava aprimorar de cada vez que empunhava uma caneta ou digitava no computador.

Era deveras doloroso para o marido perceber que a mulher não acreditava em si, julgando-o, injustamente, despeitado.

Desesperado dissera-lhe que desse a ler os seus escritos a terceiros, para que esses, isentos, lhe repetissem o que tentava provar-lhe há anos.

- Só quando os passar a limpo. - Retorquia. - Não tenho tido tempo.
- Hipergrafia, Alice. Já o estudaste, sabes o que é. Hipergrafia. Acorda! Cura-te Lili. Por favor ouve-me.

Alice sabia o que era, porém ignorava que da doença nada se produzia a não ser a perene dor.

- Estou no limite. Ouves? No limite, porra! - Gritava-lhe quando o desânimo era superior ao amor. - Como é que pretendes criar o Eddward e o Kurt, dizes-me?

Ela parava e olhava o ventre desmesuradamente proeminente, acusando o término da gestação.

Haverá momentos só meus. Como hoje. Assim continuará a ser. Não serás tu a privar-me desses, não serão os gémeos também.

Frederik atormentava-se com o futuro que adivinhava tortuoso dada a crescente irascibilidade da mulher. Era penoso dizer-lhe que ela enquanto escritora não prestava, era como se lho dissessem acerca de si e da sua obra. Mas era preciso que se apercebesse da sua loucura e para que a vida pudesse ter um rumo autêntico. Alice era infantil a exprimir-se, dava erros ortográficos e gramaticais gravíssimos e inadmissíveis para as aspirações que alimentava. Escrevia febril e ele chorava sozinho e desconsolado o seu infortúnio. Esgotara os argumentos dissuasores.

Nessa manhã viu-a despir-se para tomar banho. Escondera-lhe os lápis de cera com que era hábito escrever nos azulejos. Esperava ouvir-lhe os gritos exasperados, as reclamações repletas de raiva, os impropérios. Nada.

Durante vinte minutos o silêncio fora ensurdecedor. Não fosse a água, continuar a cair irregularmente, interrompida pelo corpo de Alice e respectivos movimentos e Frederik julgar-se-ia só em casa.

Sentou-se sobre o tampo fechado da sanita verde, encarando o cortinado opaco com os olhos mortiços. Não ousou chamá-la, limitando-se a aguardar. Pela primeira vez tinha agido de maneira concreta para a impedir do delírio. Iniciara nesse dia a oposição derradeira. Não mais seria benevolente ou permissivo. Era porque a amava que agia assim.

Alice abre a cortina e como invariável e instintivamente o marido observa-lhe os seios antes de lhe perceber qualquer outra parte do corpo.

Horrorizado constata-a raiada de sangue. Alice havia utilizado a lâmina da gillette com que se depilava para escrever na barriga.

(HELP)

Não desisti. Ando a aprender a conciliar. Conciliarei assim que conseguir. No dia em que conciliar a coisa como deve ser voltarei a considerar-me uma mulher inteira capaz das melhores conciliações. De momento estou coxinha. Pois.

*Tinha aqui uma vírgula horrorosa e ninguém me previne caraças?!

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Comments:
isto é tão mas tão bom!
põe-me os pelinhos (novamente) em pé

e tu pistó continuas aí, inteira, apenas cansada e o cansaço passa.
beijos muitos
 
:) bjs muitos. E hoje... Oôooooooooooo. oooooooooo. oooooooo. lai lai lai lai lai lai lai lai lai...
 
tou que nem posso :)))))
 
Todas as diabas têm sorte... Porca! :)

Vou-te dar uma *slamp logo à noite. :)
 
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