sábado, 21 de março de 2009

 

O homem do acordeão (no semáforo)


O homem do acordeão (no semáforo) toca resignado. Olha os que por ele passam com o ar de quem já nada espera do que lhe coube em sorte. Este homem não pede, não se finge disforme. Não pretende piedade. Dá aos outros, os dos automóveis confortáveis, o que sabe fazer, esperando que alguém o entenda. Alguém que sinta empatia e lhe ouça a melodia pungente. Não pede. Dá. Trabalho como qualquer outro. Presta um serviço: o de musicar a vida dos que vegetam no trânsito, repetitivo quotidiano. Não estende a mão, não se finge incapaz, antes solta a sua melodia e aguarda resignado que alguém perceba a situação que ali se apresenta. Sei fazer isto. Aqui está. Decidam. Poucos o entendem. Vejo-o daqui (do autocarro). Trancam-se portas, sobem-se vidros, viram-se caras receosas. Ignora-se. Aqui, distante, vejo-o bem e angustio-me. A distância, não raras vezes, a revelar-me tudo mais nítido (apesar da miopia). Do autocarro posso afirmar convicta que o entendo e que o ouço. Se lá em baixo, tê-lo-ia visto? Tê-lo-ia ouvido? Ou um pensamento: lá vem mais um, enervado e intolerante. Uma janela que subi, a cara que virei, a porta que tranquei. Não sei. Eis que uma mulher o vê. Abre a janela, conversa com ele, esgaravata o cinzeiro em busca do que lhe possa dar. Sorri-lhe. Não é que ele se alegre ou se mostre efusivo, a resignação não deixa espaço para manifestações desse calibre. Alegro-me eu porque ela o viu. Sorrio também, daqui distante. Porque aquela porta não se trancou, a janela não subiu, a cara permaneceu direita a encará-lo, a vê-lo. Aquele coração que não se fechou. Outro dia, fotografias de rafeiros de Lisboa, penduradas numa parede. Alguém vira estes rafeiros, achou-os dignos de nota. Alguém os viu, não virou a cara. Alguém os imortalizou para que outros os vejam, para que outros saibam que eles andam por aí, olhar meigo. Não pedem esses cães. Não se fingem disformes ou incapazes. Dão o que têm para dar, se os deixarem. Olhar resignado com o que lhes cabe em sorte. Hoje é o dia em que me alegro, porque há pessoas que (ainda) vêem. Ainda bem.

“HAPPY GO LUCKY” o filme de ontem. Um alerta subtil. A mensagem disfarçada de muito riso. Não se enganem, um filme alerta. Filme bofetada. Espero que andem por aí muitas “Poppy”. Coração e mente abertos. Alegria de viver. Acreditar que é possível fazer pelo menos uma pessoa feliz. Coração que vê e ouve. Todo o filme me falou (me gritou), a cena porém que mais me tocou é aquela em que ela segue o lamento de uma voz. Um sítio escuro, assustador e ainda assim atender ao queixume, mais importante que o medo. Encontra um homem, aparentemente louco. Discurso desconexo. E mantém-se ao lado dele a ouvi-lo. Simplesmente ouvi-lo. Era tudo o que ele precisava. Que alguém o ouvisse. Que filme. Não percam. (Monumental).

Um lema que me falou a adoptar para a vida: “Não te fiques.” O dia-a-dia uma luta contra a banalidade e por vezes, na tentativa de realizar conquistas que são meramente pessoais, esqueço-me que não me devo ficar também noutros aspectos. Não me quero ficar nas injustiças. Não me quero ficar quando posso lutar. Não me quero ficar se puder fazer alguma coisa nem que seja, apenas, pela tal "uma pessoa". Não me fico. Por mim. Pelos que me rodeiam. O meu ridículo papel melhor que nada. Sacudo a inércia a partir de hoje. Não tenho plano. Acredito que se me irá revelando, desde que não vista o coração de egoísmo. Basta que ouça, que veja e queira estar atenta.

E hoje, depois de alguns dias em que a vida se me afigurou sem sentido (são dias em que me dá a travadinha), todos estes acontecimentos, aparentemente díspares, a encaixar-se e de novo o fôlego para não perder de vista o que (me) é realmente importante.

A propósito de hoje ser dia Mundial da Poesia:

DESPERTAR

É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar.

EUGÉNIO DE ANDRADE

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Comments:
acredito que todos temos um bocadinho de "Poppy" dentro de nós...falta deixá-la vir ao de cima mais vezes e dar-lhe mais atenção! Que belo filme! Que delicioso serão! beijo grande
 
Soube-me pela vida como se costuma dizer :) (o melão a servir hamburgueres é que é fraquito, mas a gente perdoa pois é?)

bj gd amiga
 
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