sexta-feira, 29 de outubro de 2010

 
Ontem fui ao lançamento de SÔBOLOS RIOS QUE VÃO.

Eis que me debato com a folha de papel. Não em branco. Antes garatujada de tópicos para vos contar o máximo do que retive ontem pelas 19h da tarde. Sei que quem não pôde comparecer gostaria de ter estado presente. Espero trazer-vos um pouco do que lá se viveu.

“Sôbolos rios que vão.”

Vai doer-me este livro. Vivi de perto a agonia, fez um ano há pouco. (Ontem ainda.) Tenho-o aqui ao lado enquanto vos escrevo, certa que quando o abrir me quedarei refém. Adiante.

O Museu da Água, local escolhido para o evento, quero crer não inocentemente, dada a alusão ao elemento de que o título se compõe, é um espaço de particular beleza, ideal para acolher o lançamento destas palavras do António. Encontrava-se repleto das gentes que o estudam, o admiram e lêem. Também dos seus pares. Tenho ido espreitá-lo em diversas ocasiões e é sempre comovedor o silêncio que se instala quando entra numa sala que o espera. É um momento solene. O respeito que sentimos pelo gigante da escrita a mandar-nos calar, que não tarda o escutaremos.

“Não sei se me ouvem. Falo baixo.” – A frase tão dele, que já conheço de cor e que a cada vez proferida me enternece. Não me canso deste homem. Estava conversador. Uma delícia. Contou-nos mais de si e dos seus.

Do tio Elói (Escreve-se assim? Terei ouvido correctamente?), filho de uma senhora importante de Pombal, a quem ele e os irmãos chamavam avó Bi. (Era Bi? Ou Pi? Não sei.) Mulher de porte imponente, chapeuzinho com véu e diabética, o que ainda garoto se lhe afigurou como nobre característica. Que maravilha este pedaço da sua história. Este não ter pudor em contar-nos das dietas desta avó, análogas às dos padres, que se coibiam de comer, mas não de ir com as mãos pelos calções dos meninos acima. Avó Bi (Pi?) que se alegrava pela deferência com que o merceeiro a tratava enquanto lhe acrescentava dígitos à conta. Disse que se sentia assim com a apresentação do Professor José Gil. Como se “por ser para ele” lhe tivessem dado mais do que merece. Justíssimas palavras, sabemo-lo. Destaco-a igualmente. O tempo certo para dizer o principal, com palavras ao alcance de todos. Nada de linguagens herméticas. Menos é irrefutavelmente mais.

Continuámos a ouvi-lo enquanto se nos entregava.

Aos oito anos já escrevia. Nessa tenra idade interrogava-se sobre si, a sua vida, o sentido de tudo. É-nos, de facto, caro, encontrar um sentido. Que admiração nutro por ele, se tão cedo na existência sabia, com as entranhas, aquilo para que havia nascido. O quanto se aprende a ouvi-lo. Ele que escreve porque quer ser capaz de dizer “o que se perdeu”. Como aquela aurora da praia das maçãs que deixou escapar, sem conseguir captar no papel. A imensa distância entre a emoção e o que fica nos manuscritos e que só o trabalho reduz. Tudo palavras dele. Poder-vos-ia falar dos outros exemplos, como as suspensões triplas de Paganini, todavia, de todos esses, a tal aurora da praia das maçãs foi a que mais me tocou e levou a entender o que me (nos) queria dizer. Revisitou o tema da obra e das personagens que sobrevivem ao autor.

Deteve-se, como sempre, nas citações, nas referências aos autores que lhe são mais queridos. “Hoje estou cheio de citações”, gracejou.

Hoje António? São parte do seu encanto as frases desses nomes que nos habituamos a ouvir-lhe. Sim, embirro com citações. Já se sabe como são os humanos. Facciosos. A uns nada perdoamos. A outros… Nele estimo essas constantes alusões. Fala em Horácio e aponto. “A ler.” Menciona Dickens e acrescento à lista “A ler.”. Tchekhov? Em atraso. Ler. Diz que deixamos de gostar de Rilke quando crescemos e interrogo-me: Terei permanecido criança meu Deus? E a falta de tempo que o angustia por não saber quantos mais livros negociará com a morte, a mim apavora, porque tenho certo que não terei tempo para apanhar tudo quanto me falta aprender. Ao ouvi-lo disponho de selecção daquilo que não posso ignorar.

Perto do fim a mensagem condoída. Em Portugal a cultura ainda se encontra imersa em intolerável indiferença. É essa que define a importância de um país e ele, embora orgulhoso em ser Português, revolta-se com tamanho marasmo. Não se releva a cultura. Promove-se o mediatismo em detrimento do talento, do trabalho. O superficial supera a densidade. A perspectiva de um qualquer jovem autor, de qualidade, editar um primeiro livro é, praticamente, nula. Assim anda a literatura. Editam-se demasiados livros, sem tempo para respirarem. Muitos desprovidos de fôlego, duram menos do que uma estação. Não é isso um bom livro. Um bom livro não se pode ler num dia. (Palavras dele, isto tudo. Com ele aprendo a roubar o que me pode servir a escrita.) Um bom livro é parecido connosco e apodera-se de nós, como nos apoderamos dele. Com um bom livro conversamos, num diálogo ininterrupto, que começa depois de o acabarmos e ler de peito aberto é a única maneira de o fazer.

Não houve lugar a autógrafos. Anda cansado. O próximo livro tem-lhe colocado grandes desafios. Doze horas diárias de trabalho em volta de uma menina de cinco anos que fala por três vozes. Não se tratou de lamento. Não lhe podemos adivinhar o esforço quando o lermos. Se tal acontecesse significaria que havia falhado. (Impossível, claro está.) Para autógrafos teremos o El Corte Inglês e a FNAC do Chiado, em breve. Talvez dê lá um salto. Não por causa do autógrafo que é provável que não lho venha a pedir, antes para o ouvir outra vez.

Agradeceu à editora, Maria da Piedade, tomar tão bem conta dele. Ao Professor, a apresentação. Aos restantes a presença.

Quanto a mim temo este romance. V(L)erei Senhor Azevedo, muitas vezes, nas suas páginas. Desconheço para quando a coragem para falar com ele.

"Como se houvesse morte e não há."

Partilhei convosco o que apreendi, na esperança de vos fazer sentir que afinal puderam comparecer. Perdoem se a minha percepção adulterou a realidade.

Um abraço.


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