quarta-feira, 25 de maio de 2011
CONTINUAÇÃO - Uma pessoa (uma mulher) por um filho...
- É por agora.
- Terei tempo.
Não tinha. Nunca tinha tempo. Despachava-se tarde dos miúdos, da louça, da roupa, da vida vivida lesta. A matilha a enfurecer-se.
«Amanhã…»
E o porvir chegava a hoje e a mesma letargia a afagá-la. Tudo mais importante. Uma birra. Um colo. Gargalhadas bonitas. A louça. A roupa. Os almoços confeccionados de véspera.
«Amanhã.»
O padecimento em crescendo. «Ladram tão alto estes cães.» Ainda que fosse por aquele momento, que pensasse que haveria de ter tempo, as dúvidas:
- E se morro? Que fiz por essa que também sou, tão carente?
- Que interessas, tu? Morre descansada. Fizeste o que te competia.
- E a voz? Estes cães? (Lobos?) Feras que investem garras e presas que me laceram. Comem-me o fígado, os pulmões, o coração.
- Que voz? Que feras? Enlouqueceste de vez?
- Esta que me ensurdece. Porque não se calam os cães? Não enlouqueci. Sou sã. (Ainda.) Pergunto: Acabarei louca?
- Sim. Morrerás doente. Não há cura para o mal que te aflige.
- Há.
- Pouco importa. Olha para o relógio. Estás sem tempo.
- Tê-lo-ia não dormisse.
- Tens de descansar.
- Usasse a noite em meu proveito e talvez o silêncio. A paz. Não posso mais.
- Definharias.
Ti ri ri ri ri. Ti ri ri ri ri.
8h37. Azáfama. 9h31 e um cartão de ponto na mão. A morte às prestações registada num aparelhinho fixado à parede.
«Onde é que guardaste a caneta?»
«As folhas brancas onde estão?»
(Os tímpanos da alma a romper-se.)
«Era o dia primeiro do mês em que a decisão fora tomada. Inexorável. Havia tentado preveni-lo do que estava prestes a suceder, contudo, ele fizera-se massa indefectível para que o não enchessem de desesperança. Era irremediável a situação em que se colocara. Falhara o prazo. Falta imperdoável que se lhe colara à epiderme das mãos. Teria de devolver o indevidamente recebido. Tê-lo-ia ajudado estivesse ao seu alcance. Regras eram, todavia, torrentes contra as quais se sentia impotente para nadar, ou sequer manter o fôlego. Creia que há sempre quem se encontre a seu lado e o fim é, não raras vezes, recomeço. (Perdoe o lugar-comum.) Sem mais para lhe transmitir permita-me que o deixe a pensar onde errou, para que possa, em situação hipotética futura, errar melhor.»
Escolheu manter «Com os meus melhores cumprimentos» como se fora possível disfarçar o desvario.
Chamaram-na ao oitavo andar. Ergueram a folha ao nível do seu nariz. Vociferaram. Devolveram a missiva.
Limpou a ira alheia do sobrolho e regressou ao 7.º. Ordenaram-lhe que reescrevesse o documento. Fê-lo com gana que desconhecia encerrar. Impregnou-o de melodia, desproveu-o da(s) banalidade(s). Remeteu-o à revelia da entidade superior. Chegara a casa, nessa tarde, por demais leve. Chegou a considerar-se capaz de correr, tal era a alegria. (O peso que a gravidez lhe acrescentara refreou-lhe o impulso.) Correspondeu ao que esperavam de si, em casa, com ânimo reforçado e os seus notaram que o seu sorriso reverberava. Não lho disseram. Não era hábito partilharem o que se passava dentro de cada um.
Persistiu por tempo indeterminado na desobediência. Durante algum tempo o seu Curriculum vitae permaneceu incólume. Despedimento nenhum. Trabalhadora exemplar. A escrita cresceu-lhe. O trabalho diário permitia-lhe evoluir. A voz tornara-se meiga. (Um cachorro amoroso.) Afagava-lhe a consciência. Ela cumpria-se dia-a-dia. Pensava: «Morrerei pacificada.» Queria acreditar estar mais próxima de escrever Literatura. Não seria lida pelas massas, mas isso não a moía. Tinha um leitor de cada vez que redigia uma participação transformada, com enlevo, em arte. Andava feliz como aquele que tem sede e se depara com o que beber.
Era o dia primeiro em que a decisão fora tomada.
Tinham começado a chegar, em catadupa, as respostas ao empreendimento daquela funcionária pública. Não se tratava de cartas de reclamação, antes palavras de incredulidade e reconhecimento.
Se por um lado se encontravam devastados pela culpa que lhes fora imputada e que, claramente, os prejudicava. Por outro, a forma como lhes havia sido comunicado desprovia a(s) respectiva(s) sentença(s) de crueldade. Revelavam-se ineptos para contestar o que era, no mínimo, estranho. Vinham, por conseguinte, felicitar os serviços pela façanha e solicitar que, em situações de incumprimentos futuros, fossem notificados por aquela mulher que se recusava a ser tratada por qualquer título.
De nada lhe serviram os louvores. Tão pouco o facto de ter já inúmeros leitores entusiásticos. Foi despedida.
Precisava de dinheiro. Filhos para alimentar; necessidades primárias – Noutras latitudes: luxos). Comprometimento(s).
A crise instalara-se no País - Era o que afirmavam os meios de comunicação. - uns anos antes daquele em que redigira o ofício cinquenta. Foi parar à rua. Estendia suplicante a mão, todos os dias úteis das 9h31 às 17h32. (Jamais ficara a dever horas à casa.)
A sua mendicidade soava a poesia.
Andreia Azevedo Moreira
(14/05/2011 pelas 23 e qualquer coisa a 15/05/2011 às 01h16)
Etiquetas: ALENTO, Com passinhos de criança percorro o caminho que QUERO, ESCRITA, HISTÓRIAS
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