quarta-feira, 25 de maio de 2011

 

CONTINUAÇÃO - Uma pessoa (uma mulher) por um filho...

Apresentava-se ao serviço às 9h31. Havia um mundo real para dactilografar. Carecia de tempo e de espaço para a ficção. A dela. – Imaginada deveras. Mal sucedida. – A dos outros: Ah tão criativa! – Não mais do que o seu modo de lhes contar das frustrações, dos devaneios, do medo. Falava-lhes da(s) sua(s) verdade(s). Acreditassem se lhes aprouvesse. Curioso era que duvidassem do que era de facto aplaudindo-o, desconsiderando o que lhe custara as entranhas a imaginar. Relevava a injustiça, porque o resultado era sempre o desmedido alívio por suprir a urgência de que padecia. Como se o perene cansaço, por ouvir dentro das meninges imperativa voz - Qual matilha de canídeos latindo. - lhe desse trégua. Havia muito que não descansava da dita. Precisava do dinheiro: filhos para criar; necessidades elementares (Noutras latitudes superfluidades.); responsabilidades. A certeza de não poder agredir outrem com as omoplatas sem que o peito lhe escurecesse. Cria na luz para criar. Uns apreciam a treva. Ela almejava escrevê-la sem habitá-la. A angústia andava a alimentar-se-lhe da alegria de outrora. Consolava-se:

- É por agora.

- Terei tempo.

Não tinha. Nunca tinha tempo. Despachava-se tarde dos miúdos, da louça, da roupa, da vida vivida lesta. A matilha a enfurecer-se.
Enrodilhava-se na fadiga como se frio e essa cobertor. Adiava.

«Amanhã…»

E o porvir chegava a hoje e a mesma letargia a afagá-la. Tudo mais importante. Uma birra. Um colo. Gargalhadas bonitas. A louça. A roupa. Os almoços confeccionados de véspera.

«Amanhã.»

O padecimento em crescendo. «Ladram tão alto estes cães.» Ainda que fosse por aquele momento, que pensasse que haveria de ter tempo, as dúvidas:

- E se morro? Que fiz por essa que também sou, tão carente?

- Que interessas, tu? Morre descansada. Fizeste o que te competia.

- E a voz? Estes cães? (Lobos?) Feras que investem garras e presas que me laceram. Comem-me o fígado, os pulmões, o coração.

- Que voz? Que feras? Enlouqueceste de vez?

- Esta que me ensurdece. Porque não se calam os cães? Não enlouqueci. Sou sã. (Ainda.) Pergunto: Acabarei louca?

- Sim. Morrerás doente. Não há cura para o mal que te aflige.

- Há.

- Pouco importa. Olha para o relógio. Estás sem tempo.

- Tê-lo-ia não dormisse.

- Tens de descansar.

- Usasse a noite em meu proveito e talvez o silêncio. A paz. Não posso mais.

- Definharias.
- Há quem consiga. Três, quatro horas de sono. Quanto baste.
- Não sejas ridícula. Vamos, acorda. Está na hora.

Ti ri ri ri ri. Ti ri ri ri ri.

8h37. Azáfama. 9h31 e um cartão de ponto na mão. A morte às prestações registada num aparelhinho fixado à parede.
Aquilo continuou até ao intolerável. A voz: Implacável.

«Onde é que guardaste a caneta?»
«As folhas brancas onde estão?»

(Os tímpanos da alma a romper-se.)

Impunha-se-lhe cessar a representação. Uma criança de cinco anos chamar-lhe-ia “fingidona”, realizasse o tamanho da mentira que alimentava.
Principiou trémula o ofício n.º 50 de 2011. Ousou furtar-se ao costumeiro “Vimos pelo presente ofício”

«Era o dia primeiro do mês em que a decisão fora tomada. Inexorável. Havia tentado preveni-lo do que estava prestes a suceder, contudo, ele fizera-se massa indefectível para que o não enchessem de desesperança. Era irremediável a situação em que se colocara. Falhara o prazo. Falta imperdoável que se lhe colara à epiderme das mãos. Teria de devolver o indevidamente recebido. Tê-lo-ia ajudado estivesse ao seu alcance. Regras eram, todavia, torrentes contra as quais se sentia impotente para nadar, ou sequer manter o fôlego. Creia que há sempre quem se encontre a seu lado e o fim é, não raras vezes, recomeço. (Perdoe o lugar-comum.) Sem mais para lhe transmitir permita-me que o deixe a pensar onde errou, para que possa, em situação hipotética futura, errar melhor.»

Escolheu manter «Com os meus melhores cumprimentos» como se fora possível disfarçar o desvario.

Chamaram-na ao oitavo andar. Ergueram a folha ao nível do seu nariz. Vociferaram. Devolveram a missiva.

Limpou a ira alheia do sobrolho e regressou ao 7.º. Ordenaram-lhe que reescrevesse o documento. Fê-lo com gana que desconhecia encerrar. Impregnou-o de melodia, desproveu-o da(s) banalidade(s). Remeteu-o à revelia da entidade superior. Chegara a casa, nessa tarde, por demais leve. Chegou a considerar-se capaz de correr, tal era a alegria. (O peso que a gravidez lhe acrescentara refreou-lhe o impulso.) Correspondeu ao que esperavam de si, em casa, com ânimo reforçado e os seus notaram que o seu sorriso reverberava. Não lho disseram. Não era hábito partilharem o que se passava dentro de cada um.

Persistiu por tempo indeterminado na desobediência. Durante algum tempo o seu Curriculum vitae permaneceu incólume. Despedimento nenhum. Trabalhadora exemplar. A escrita cresceu-lhe. O trabalho diário permitia-lhe evoluir. A voz tornara-se meiga. (Um cachorro amoroso.) Afagava-lhe a consciência. Ela cumpria-se dia-a-dia. Pensava: «Morrerei pacificada.» Queria acreditar estar mais próxima de escrever Literatura. Não seria lida pelas massas, mas isso não a moía. Tinha um leitor de cada vez que redigia uma participação transformada, com enlevo, em arte. Andava feliz como aquele que tem sede e se depara com o que beber.

Era o dia primeiro em que a decisão fora tomada.

Tinham começado a chegar, em catadupa, as respostas ao empreendimento daquela funcionária pública. Não se tratava de cartas de reclamação, antes palavras de incredulidade e reconhecimento.

Se por um lado se encontravam devastados pela culpa que lhes fora imputada e que, claramente, os prejudicava. Por outro, a forma como lhes havia sido comunicado desprovia a(s) respectiva(s) sentença(s) de crueldade. Revelavam-se ineptos para contestar o que era, no mínimo, estranho. Vinham, por conseguinte, felicitar os serviços pela façanha e solicitar que, em situações de incumprimentos futuros, fossem notificados por aquela mulher que se recusava a ser tratada por qualquer título.

De nada lhe serviram os louvores. Tão pouco o facto de ter já inúmeros leitores entusiásticos. Foi despedida.

Precisava de dinheiro. Filhos para alimentar; necessidades primárias – Noutras latitudes: luxos). Comprometimento(s).

A crise instalara-se no País - Era o que afirmavam os meios de comunicação. - uns anos antes daquele em que redigira o ofício cinquenta. Foi parar à rua. Estendia suplicante a mão, todos os dias úteis das 9h31 às 17h32. (Jamais ficara a dever horas à casa.)

A sua mendicidade soava a poesia.

Andreia Azevedo Moreira
(14/05/2011 pelas 23 e qualquer coisa a 15/05/2011 às 01h16)

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Comments:
caraças pá! tenho os pelinhos do corpo todos em pé.
não pares nunca ouviste?
beijos muitos
 
Todos, todos, todos? hein? Todos? Ui. :)

P.S. OBRIGADA! :)
 
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