sexta-feira, 26 de agosto de 2011
- Não posso. Anda daí.
- Onde?
- Já vais ver.
- É bonito lá onde vamos?
- Há paz.
- Precisamos de paz papá?
- Preciso.
- E mais papá?
- Preciso de ti também.
- Porquê papá? Para jogar à bola?
- Mais ou menos. Não penses que te estou a usar filho. Quero-te bem.
- Usar papá? Como usar um boné, por exemplo?
- Sim. Como usar um boné. Não estou a fazer isso.
- Então o que estás a fazer papá? Porque me apertas com tanta força a mão? Dói um bocadinho sabes? Não queres que fuja, é?
- É. É isso. Não me podes fugir. Não agora.
- Nunca fugiria de ti papá. Gosto tanto de ti. Olha, gosto mais de ti do que de jogar à bola e tu sabes como eu gosto tanto de jogar à bola, pois é?
- Pois.
- Olha, mas larga-me a mão. Eu não fujo. Prometo!
- Não posso filho. Preciso de ti.
- O que é precisar papá?
- É não poder passar sem... Não posso passar sem ti. Entendes? É por isso que te levo para onde vou. Para não estar sem ti.
- Mas eu estou sempre aqui para ti papá. Não vês?
- Sim mas vou para longe e quero levar-te comigo.
- E a mamã?
- A mamã não vai.
- E como é que eu lhe mostro um passe muita fixe que aprendi hoje de manhã lá nas escolinhas?
- Não mostras.
- Não é justo papá. Também lhe quero mostrar. Eu também gosto muito da mamã sabes?
- Sei. Cala-te agora um bocadinho e acelera o passo.
- Tens pressa papá?
- Tenho.
- Porquê?
- Porque é tarde para mim. (Para nós.)
- Tarde? Mas ainda nem almocei!
- Quero que saibas que é porque te amo muito.
- Vou ficar de castigo?
- De certa forma sim.
- Mas eu não fiz nada de mal papá! Alguém te contou uma mentira? Eu não fiz nada de mal! Não me ponhas de castigo.
- Tem de ser.
- Porquê?
- Porque sou egoísta. Quero que a tua mãe sofra. Que sinta o que é estar vazio.
- Queres aleijar a mamã?
- Quero.
- Mas isso não se faz papá. Não se aleijam pessoas de propósito! Tu é que me ensinaste isso lembras-te? Só tenho seis anos, mas isso eu sei.
- Tens razão. Mas agora não te consigo dar ouvidos. Nem te consigo ver. Só sei que é hoje que acabamos.
- Acabamos como num um dois três acabou a história?
- Sim.
- Não posso papá. Desculpa. Amanhã tenho de jogar com o João André de manhã. Prometi-lhe a desforra. Marquei-lhe muitos golos hoje sabes? Ficou tão chateado comigo. E como quero que continuemos amigos, amanhã vou deixá-lo ganhar.
- Amanhã não podes ir à escola filho.
- Papá, não posso é faltar. Amanhã vou à escola sim! Vais ver!
- Confia em mim. Aperta a mão do pai.
- Não quero papá. Estás a assustar-me com essa conversa do um dois três acabou a história. Ainda tenho uma data de jogos para jogar com o João André e tu não queres deixar. Isso deixa-me triste papá.
- Anda. Já decidi. Anda. Confia no pai.
- Ai! - Começa a chorar. Soluça desconsolado com medo do, até então, companheiro de muitas brincadeiras.
(...)
- Porque me levaste para morrer papá? Não estava doente. Se estivesse, nada que umas torradinhas com doce da avó e chá não curassem. Porque me apertaste com tanta força a mão papá?! Porque não me deixaste dar-te uma canelada com toda a minha força e fugir-te? Sentava-me no passeio à espera que alguém me viesse buscar. Talvez a mamã.
- A mãe não! A tua mãe nem pensar. Não te merece.
- Porquê?
- Porque já não nos quer.
- A mamã já não me quer?
- Já não ME quer.
- E a mim?
- Hum?
- E a mim?
- A ti quer e nunca mais te vai ter.
- Ter?
- Sim. És nosso. Meu e dela. Mas agora eu é que sei o que hei-de fazer contigo. Vais ser de ninguém.
- E tudo o que eu queria ainda fazer? Achas que vou ter tempo até à estação dos combóios?
- Não filho. Mas o que são os teus sonhos perto da desilusão que sinto?
- Cantas-me o "Pouca-terra-pouca-terra-pouca-terra. Uuuuuuuuú!"?
- Não tenho tempo.
- Larga-me a mão! Larga-me a mão! Larga-me a mão! Tu não és o meu papá!
- Já não confias em mim?
- Não percebo nada do que estás a dizer papá. Só sei que amanhã quero jogar à bola com o João André. Quero rir, correr, brincar e ser alegre!
A vida daquele menino não podia acabar assim. Colhida por um comboio a 150km/hora.
Todavia, acabou.
Desde que li a parangona que me sinto doente.
As crianças não são coisas!
As crianças não são coisas!
As crianças não são coisas.
Etiquetas: Da dor alheia que fere como se nossa, DOR, GRITOS DE REVOLTA E INDIGNAÇÃO, INCREDULIDADE, TREVA
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